quinta-feira, 23 de junho de 2011

A tomada de posse


O novo governo - o melhor de todos dos últimos 37 anos como dizia um comentador habitual do Jornal da Manhã da RPT 1 no passado domingo - tomou ontem posse a toda a brida por ordem do Presidente da República que ultimamente está tão interveniente como nunca fora, para hoje mesmo o novo PM tomar o avião (em classe turística para mostrar como já estamos a poupar) a fim de estar presente na reunião do Conselho Europeu.




E ninguém melhor que o jornalista-escritor Baptista-Bastos para nos descrever no seu Português verdadeiramente impecável a solenidade do momento. Aqui fica mais uma das suas inimitáveis crónicas.

Uma hora de sensaboria e de bocejo

Estavam sentados, direitos, formais, brunidos, infalíveis, porém um pouco confusos. Tinham dormido mal, com a excitação memorável de ser ministros. A sala, triste e sombria, não ajudava à contemplação pontual do momento. Evolava um discreto perfume a Maderas del Oriente. O dr. Cavaco, mãos juntas, aquele vago sorriso de cortesia que faz com que O Grito, de Munch, pareça uma alegoria às aleluias, observava os circunstantes. Contraía, de vez em quando, os músculos da face, e as fibras nervosas do pescoço esticavam-se de modo inquietante.

Em frente e lateralmente aos sentados, o Governo que ia embora. Lá estava José Sócrates, cara fechada, olhar disperso, sem demonstrar o menor resquício de simpatia ou admiração. Também não demonstrava mágoa, desdém ou penitência. Estava ali e não estava ali, se me faço entender. Eu, a um canto da sala, envolvido na penumbra favorável ao meu desejável infiltramento, retinha a cena, arquivando-a nas memórias. Um penetra, eis o que eu era. Mesmo assim, fui reconhecido por dois ou três dos antigos ministros, assim como por uma das recém-vindas. Cumprimentaram-me sem afecto e com inusitada curiosidade. "Que estará este tipo a fazer por aqui?"

Pedro Passos Coelho, grave como convém (mas também não convém ser assim tão grave), dava a ideia de que procurava um adjectivo, uma frase inicial, uma imagem de circunstância. Paulo Portas, na terceira cadeira do poder, agitava-se e tentava manter uma conversa avulsa e transeunte com Vítor Gaspar, que não lhe ligava nenhuma. Mas Paulo sorria de enlevo. A felicidade invadia-o intensamente e ele era um homem cheio de júbilo, graças a Deus!

Dobro o olhar para a direita e continuo. Assunção Crista fora elevada aos céus: um belo sorriso sem reticências, o prazer de ser quem é e ali estar, ministra múltipla, elementar e clara. Nuno Crato não fazia parte daquela pintura. Um pouco sombrio, ele, de hábito tão aplicado em espalhar empatia, sabedoria e simplicidade, expunha o lado chuvoso e uma melancolia funesta, impossível e resignada.

O dr. Cavaco seguia, sem curiosidade aparente, o protocolo das nomeações. Fiquei a saber o nome completo dos que nos vão governar, e distinguir, pelos longos patronímicos, as virtudes e os privilégios familiares dos novos senhores e senhoras. Portas insistia em conversar com o parceiro do lado, que não ocultava, nem sequer dissimulava o seu bocejante desapego.

Finalmente, e depois de atroz intervalo, o dr. Cavaco ameaçou-nos com um discurso. É dos costumes e das imposições. Em todo o caso, o texto poderia ter sido mais cuidado, mais original e mais apelativo. Em suma: ele quer que nos sujeitemos ao diktat da troika, ao respeito pelos compromissos assumidos e à obediência sem hesitações. Tudo em nome do "interesse nacional", expressão itinerante que pode servir a comunistas, a socialistas, a liberais e a tolos, nos momentos azados.

Não empolgou ninguém. O discurso de Passos Coelho pareceu-me mais cuidado. Pelo menos não tropeçou nas preposições e evitou, graciosamente, a cegueira de cabeça caída comum a quem provoca e acelera a aldrabice. Porém, repetiu, maçadoramente, o fado da nossa desgraça, trinando os versos emocionados de uma pátria perdida se nos não sacrificarmos até ao desespero. Para começo de ciclo, o palavreado não foi sedutor, apesar da boa voz de Passos, cujas entoações e pausas fazem lembrar o tenor António José.

De repente, estava tudo dito e feito. O cerimonial durara uma hora. Uma chatice que a República nos prepara. Carros enormes, fúlgidos e numerosos saíram da Ajuda, nobre colina, para outros destinos. Modestamente, fatigado, acabrunhado e triste, fui para casa.

8 comentários:

  1. Isto não é uma crónica, é... uma verdadeira Obra de Arte.
    :)

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. É um indivíduo ( este B.B. ) que não vai à minha missa.

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  4. Li (leio sempre).
    Quando sair do DN,
    imediatamente
    deixo de ler tal jornal

    Vou sempre à missa dele...

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  5. Na distância tudo é novidade, aqui apenas se disseram algumas coisas, bem poucas. Recorro aos jornais digitais que nem sempre possuem a extensão desejada, sois vós que os me aportais informação.
    Obrigado.
    Um grande abraço

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  6. Pois eu que não assisti à cena fiquei amplamente documentada pelo nosso excelente cronista.
    Quero apenas acrescentar as palavras de Ricardo Araújo Pereira:
    "Este é o melhor Governo das últimas três semanas"...
    Malgré tout seria interessante que chegasse a bom porto!

    Abraço

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  7. Eu não sou muito de missas, mas também vou sempre à missa do BB...

    Obrigada, João Meneres, pela sua visita. Obrigada, Duarte, e todos.

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  8. Melhor que este,só o retrato da família real pintado pelo Goya...

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