quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Prémio PT de Literatura


O Prémio PT de Literatura 2010 foi atribuído ao poeta-cantor Chico Buarque de Hollanda pelo seu quarto romance “Leite Derramado” narrativa em primeira pessoa de um velho com mais de cem anos que, da sua cama de hospital, relata a história da sua vida e da sua família para quem quer ouvir, na assunção de que está a ditá-la para alguém que está a escrevê-la.

Já tinha lido, pela altura do Natal passado, este romance que achei extraordinariamente bem arquitectado e muitíssimo bem escrito. Trata-se de um romance protagonizado por um  verdadeiro anti-herói que quase destroi tudo quanto toca, desbaratando a imensa fortuna dos seus pais e avós pela sua preguiça, a sua inépcia, a sua falta de jeito.

Recomendo vivamente, não obstante ser bastante deprimente. Entretanto transcrevo uma das muitas passagens interessantes da narrativa.

«Eulálio Montenegro d’Assumpção, 16 de Junho de 1907, viúvo. Pai, Eulálio Ribas d’Assumpção, como aquele rua atrás da estação do metrô. Se bem que durante dois anos ele foi praça arborizada no centro da cidade, depois de os liberais tomarem o poder e trocarem seu nome pelo de um caudilho gaúcho. A senhora já deve ter lido que em 1930 os gaúchos invadiram a capital, amarraram seus cavalos no obelisco e jogaram nossas tradições no lixo. Tempos mais tarde um prefeito esclarecido reabilitou meu pai, dando o seu nome a um túnel. Mas vieram os militares e destituíram papai pela segunda vez, rebatizaram o túnel com o nome de um tenente que perdeu uma perna. Enfim, com o advento da democracia, um vereador ecologista não sei por que cargas-d’água conferiu a meu pai aquela rua sem saída. Meu avô também é uma travessa, lá para os lados das docas. E pelo meu lado materno, o Rio de Janeiro parece uma árvore genealógica, se duvidar mande um moleque comprar o mapa da cidade. Estes são meus dados pessoais, caso a senhora tenha interesse em atualizar o cadastro. O resto são bagatelas de que não me ocupo, aliás não pedi para estar aqui, quem me internou foi a minha filha. Convênio médico não é assunto meu, e se não estiver quite, por favor dirija-se à dona Maria Eulália. Para efeitos de contabilidade, quem paga minhas despesas é meu tataraneto, Eulálio d’Assumpção Palumba Neto. E se fizer questão de saber de onde procedem seus rendimentos, eu lhe afirmo que não tenho a menor ideia. Sou muito grato ao garotão, mas para ganhar milhões sem instrução alguma, deve ser artista de cinema ou coisa pior, pode escrever aí. Mas a senhora não escreve nada, a senhora abana a cabeça e me olha como se eu falasse disparates. As pessoas não se dão ao trabalho de escutar um velho, e é por isso que há tantos velhos embatucados por aí, o olhar perdido, numa espécie de país estrangeiro. Disparates quem fala é a minha filha que tem oitenta anos e olhe lá. O garotão viaja para não sei onde, anda com malas cheias de dinheiro, e ela diz, este sim é um legítimo Assumpção. Mas o dinheiro dos Assumpção sempre foi limpo, era dinheiro de quem não precisa de dinheiro. Saiba a senhora que ao ganhar do presidente Campos Sales a concessão do porto de Manaus, meu pai era um jovem político bem-conceituado, sua fortuna de família era antiga. Não sei se alguma vez lhe contei que meu bisavô foi feito barão por dom Pedro I, pagava altos tributos à Coroa pelo comércio de mão-de-obra de Moçambique.» (pág. 93-94)


3 comentários:

  1. Primeiro comecei por ouvi-lo e só muito mais tarde a lê-lo. Bonito gesto de uma grande senhora, Pilar Del Rio, ao retirar “Caim” da candidatura ao prémio. Não é só o Chico que está de parabéns, é também a Língua Portuguesa.

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  2. Eu também já o li...
    É dolorosamente comovente!

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  3. De Chico Buarque, apenas conheço algumas canções. Muito interventivo. Nunca li nenhum dos seus livros mas, nunca é tarde para o ler.

    Grato pelasua mensagem de hoje.
    Um abraço de amizade. João

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