segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Nos 70 anos da morte de Afonso Lopes Vieira

Falar em  Afonso Lopes Vieira faz-nos regressar aos nossos livros [únicos e fascizantes, diga-se] da Escola Primária em que apareciam aqueles versos para a infância do seu livro de 1911 Animais Nossos Amigos: Os Bois, O Cão faz ão ão, O Gato e o encantatório Ninhos, que era assim:

Ninhos
Os passarinhos
Tão engraçados,
Fazem os ninhos
Com mil cuidados.

São p’ra os filhinhos
Que estão p’ra ter
Que os passarinhos
Os vão fazer.

Nos bicos trazem
Coisas pequenas,
E os ninhos fazem
De musgo e penas.

Depois, lá têm
Os seus meninos,
Tão pequeninos
Ao pé da mãe.

Nunca se faça
Mal a um ninho,
À linda graça
De um passarinho!

Que nos lembremos
Sempre também
Do pai que temos,
Da nossa mãe!

…………………………………………….......

E por aí nos ficamos, que não foi autor estudado (nem falado) no Liceu e menos ainda na Faculdade.  A imagem que se tem é a de um autor de fim de século, de sensibilidade romântica muito colada aos valores morais (moralistas) da Igreja, um burguês a respirar e a transpirar aquela bondade romântica que pingava para o povo desfavorecido, pobre, miserável, mas cheio de saudável mansidão. Qualidades muito ao estilo do Estado Novo e que este aproveitou tanto quanto pôde.

Sabemos (quantos saberemos?!) que, aquando da inauguração da Capelinha das Aparições em Fátima, foi ele o autor da letra de «Para o Ave em Fátima». Fica então, quase sem remissão, autor ao serviço do salazarismo. (ver nota 1)

Então como explicar as inefáveis Éclogas de Agora, de 1935, que constituem um verdadeiro espírito de resistência ao Estado Novo? Nestas cinco éclogas, num estilo bucólico muito pessoal e numa linguagem críptica e metafórica, o autor desenvolve diálogos entre personagens/pastores resguardadas por criptónimos a fim de ludibriar a Censura. O poeta toma o nome de Umbro, Viviano, Aldo, por exemplo. (ver nota 2)


De notar o simbolismo do desenho da capa

Terá Afonso Lopes Vieira, de facto, sido um autor ao serviço do Estado Novo, ou ter-se-á o Estado Novo servido de Afonso Lopes Vieira (como de outros tantos)?

Foi esta a temática do Colóquio que a Câmara Municipal e a Biblioteca Municipal de Leiria – que tem o nome (e o acervo bibliotecário) do autor aqui nascido em 1878 – promoveram na passada terça-feira, dia 26, aos 70 anos da sua morte.

O Colóquio teve por tema «A glória do esquecimento» e teve como oradores, grandes estudiosos da vida e da obra do autor leiriense, como os Doutores Cristina Nobre (do IPL), Paulo Alexandre Pereira (da Universidade de Aveiro); José Rui Teixeira (da Universidade Católica do Porto); Luís Reis Torgal (da Universidade de Coimbra); e Eduardo Cintra Torres (da Universidade Católica de Lisboa).


Podem crer que foi uma jornada de grande nível cultural e de grande aprendizagem literária.

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Nota 1

PARA O AVE DE FÁTIMA 

A TREZE de Maio, na Cova da Iria, apar'ceu, brilhando, a Virgem Maria. AVE 

A Virgem Maria, cercada de luz, nossa Mãe bemdita e Mãe de JESUS. AVE 

O mundo sofria; Portugal ferido sangrava e gemia.
Foi aos pastorinhos q. a Virgem falou. Desde então nas almas nova Luz brilhou. AVE 
Com doces palavras mandou-nos rezar, a Virgem Maria para nos salvar! AVE 
Achou logo a Pátria remédio a seu mal. E a Virgem bemdita Salvou Portugal! AVE 

Mas jamais esqueçam os bons corações q. nos fez a Virgem determinações, Falou contra o luxo, contra o impudor, de imodestas modas de uso pecador. Disse q. a pureza é querida a Jesus, disse q. a luxúria ao fogo conduz. A treze de Outubro disse-nos a Luz e a Virgem Maria escuta nos céus. AVE 
Á Pátria q. é vossa, dai Honra, Alegria e Graça de Deus AVE 

Á Virgem bemdita cante seu louvor toda a nossa terra num hino de Amor AVE 
Todo o mundo A louve para se salvar, desde o vale ao monte, desde o monte ao mar. AVE 
Já por todo o mundo se ama o nome Seu Portugal a Cristo tantas almas deu. AVE 
Oh, demos-lhe graças por nos dar seu Bem, à Virgem Maria, nossa qu'rida Mãe! AVE 
E para pagarmos tal graça e favor, tenham nossas almas só bondade e Amor. AVE 
Ave, Virgem Santa, 'strêla q. nos guia! Ave, Mãe da Pátria, Oh Virgem Maria!

(in «AFONSO LOPES VIEIRA  — de Conto do Natal (1905) a Santo António. Jornada do Centenário (1932) —  um percurso do apaziguamento »  Cristina Nobre )
……………………………………..

Nota 2  (excerto de uma das éclogas - Écloga II)

Viviano
(…)
Quando emprego os meus olhos
em tudo o que é passado
louvo o alto destino
que nos deixou de banda entre os festeiros
das funções deste prado
para ficarmos firmes e leais,
alheios à festança
de tanta vã mentira,
de tanta dor do gado,
inimigos de tantos maiorais!...

Esse gado mesquinho defendemos
tantos anos seguidos,
levantando os cajados
contra os lobos que assaltam os rebanhos,
desde os lobos azuis [monárquicos liberais-constitucionais, que vieram a fornecer ao Estado Novo o grosso da sua componente de apoiantes monárquicos]
(já muito desdentados)
té os vermelhos lobos [comunistas]
de perigosa goela!
E agora novos lobos [corporativistas de Estado - Salazaristas]
com fereza gelada
devoram as ovelhas,
assaltam a manada,
mandando que nem brado ou voz se solte
por que não se importunem tais orelhas!...
(…)

17 comentários:

  1. Pouco sei sobre Afonso Lopes Vieira por isso achei esta mensagem de hoje muito interessante. Lembro essa dos passarinhos dita pela minha mãe. Gostei de toda a informação, Graça.

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  2. Gosto do poeta e da sua poesia clara e aberta a todos.
    Ligado ou não ao Estado Novo o poeta consegue resumir o pensamento do povo e não da Igreja.

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    1. É verdade, Luís! Conseguiu registar o pensamento do povo daquela época.

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  3. Literatura acomodada, conservadora, da burguesia letrada...
    Mas um vulto que marcou uma época.
    Só lamento é que se esqueçam com demasiada leviandade de Acácio de Paiva. Por sinal, o pouco espólio de Acácio de Paiva, à guarda da Biblioteca Municipal de Leiria, até se encontra integrado (em termos de espaço físico) integrada no Arquivo "ALV".

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    1. Tanto poeta esquecido na nossa terra! Estou certa que há de chegar a altura de recordarem Acácio de Paiva!

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  4. Já agora, vale a pena ir até São Pedro de Moel e fazer uma pausa, relembrando o Grande Afonso Lopes Vieira!

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    1. À sua casa-nau!! Ainda não arranjei oportunidade de a visitar por dentro, mas hei de fazê-lo! Só se visita no verão.

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  5. Tenha ele estado ao serviço do salazarismo, ou tenha sido por ele utilizado, é um facto que o que escreveu era inteligente, tinha ritmo, ficou dentro de nós - quem não se lembra ainda dos "passarinhos"?
    Acredito que tenha sido um colóquio muito interessante - assim como foi este teu post!

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    1. Foi, de facto, muito bom! Os oradores convidados eram muito bons. Foi um verdadeiro banho de literatura!

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  6. Afonso Lopes Vieira, ficará para sempre ligado às minhas mais gratas recordações da infância, Graça.
    Ainda hoje sei de cor muitos dos seus poemas, aprendidos nos livros da terceira e quarta classe!
    Ainda há pouco fiz referência ao poema O Gato, a propósito de um meu post sobre a inveja.

    "Não tenho inveja a ninguém
    aqui na minha janela
    onde me sinto tão bem"

    Ainda bem que as Câmaras Municipais, unidas a outros organismos, organizam Colóquios e debates, para que não caiam no esquecimento os grandes pedagogos lusitanos.

    Obrigada por esta deliciosa partilha, que veio reavivar memórias de todos os da nossa geração.

    Um beijinho, Graça.

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    1. Ainda bem que gostaste, Janita! Lembro-me bem dessa tua entrada em que invocas o poema O Gato.

      Beijinho pela tua simpatia.

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  7. Os passarinhos lembraram-me momentos muito felizes!
    obg.
    bjs

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  8. De Afonso Lopes Vieira, conheço os poemas da primária. Muitas vezes tenho cantado o hino de Fátima aqui se vai rezando intercalando o Terço, embora se cante só até ao salvou Portugal. Mas não sabia que era do Afonso Lopes Vieira. Das éclogas, é a primeira vez que oiço falar.
    Abraço

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  9. Na continuidade do colóquio, que tivemos o grato prazer em assistir, informo-a que recebemos da parte do Prof. Doutor José Rui Teixeira os seguintes livros:
    - O Livro de Guilherme de Faria I SAUDADE MINHA (poesias escolhidas)
    - Vida e Obra de Guilherme de Faria - Os versos por escrever
    - Diáspora
    Caso tenha interesse em consultá-los terei todo o prazer em lhos emprestar.

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  10. Desconhecia ser Vieira o autor do Avé de Fátima.

    Não será que a ditadura se serviu dele e que ele se pôs a jeito?

    Grato abraço pelo interessante texto

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