quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Fernando Tordo emigrou

Gosto do Tordo (como do Carlos Mendes) desde muito antes de ter ido à Eurovisão cantar a Tourada. Gosto do Tordo desde o tempo dos Sheiks e assim. É um rapaz da minha idade, do meu ano, do meu signo e eu sempre gostei da voz dele. Gosto muito das suas canções com ou sem o Ary. Gostei muito daquele tempo do «Só nós três» com o Paulo de Carvalho e o Carlos Mendes. E agora não gostei nada de saber que ia emigrar para o Brasil porque não tem como sobreviver neste país e que partiu ontem.

Li há pouco a carta (aberta) que o filho, o jovem escritor João Tordo, escreveu sobre o assunto e transcrevo-a para aqui, nunca numa perspetiva de lamechice, mas muito pelo que tem de testemunho vivo da(s) triste(s) situação(õe)s que se vivem atualmente  neste triste país.

Se tiverem paciência, dêem uma vista de olhos. Vale a pena.


Carta de João Tordo ao pai

«Ontem, o meu pai foi-se embora. Não vai e já volta; emigrou para o Recife e deixou este país, onde nasceu e onde viveu durante 65 anos. A sua reforma seria, por cá, de duzentos e poucos euros, mais uma pequena reforma da Sociedade Portuguesa de Autores que tem servido, durante os últimos anos, para pagar o carro onde se deslocava por Lisboa e para os concertos que foi dando pelo país. Nesses concertos teve salas cheias, meio-cheias e, por vezes, quase vazias; fê-lo sempre (era o seu trabalho) com um sorriso nos lábios e boa disposição, ganhando à bilheteira. Ontem, quando me deitei, senti-me triste. E, ao mesmo tempo, senti-me feliz. Triste, porque o mais normal é que os filhos emigrem e não os pais (mas talvez Portugal tenha sido capaz, nos últimos anos, de conseguir baralhar essa tendência). Feliz, porque admiro-lhe a coragem de começar outra vez num país que quase desconhece (e onde quase o desconhecem), partindo animado pelas coisas novas que irá encontrar. Tudo isto são coisas pessoais que não interessam a ninguém, excepto à família do senhor Tordo. Acontece que o meu pai, quer se goste ou não da música que fez, foi uma figura conhecida desde muito novo e, portanto, a sua partida, que ele se limitou a anunciar no Facebook, onde mantinha contacto regular com os amigos e admiradores, acabou por se tornar mediática. E é essa a razão pela qual escrevo: porque, quase sem o querer, li alguns dos comentários à sua partida. Muita gente se despediu com palavras de encorajamento. Outros, contudo, mandaram-no para Cuba. Ou para a Coreia do Norte. Ou disseram que já devia ter emigrado há muito. Que só faz falta quem cá está. Chamam-lhe palavrões dos duros. Associam-no à política, de que se dissociou activamente há décadas (enquanto lá esteve contribuiu, à sua modesta maneira, com outros músicos, escritores, cineastas e artistas, para a libertação de um povo). E perguntaram o que iria fazer: limpar WC's e cozinhas? Usufruir da reforma dourada? Agarrar um "tacho" proporcionado pelos "amiguinhos"? Houve até um que, com ironia insuspeita, lhe pediu que "deixasse cá a reforma". Os duzentos e tal euros. Eu entendo o desamor. Sempre o entendi; é natural, ainda mais natural quando vivemos como vivemos e onde vivemos e com as dificuldades por que passamos. O que eu não entendo é o ódio. O meu pai, que é uma pessoa cheia de defeitos como todos nós - e como todos os autores destes singelos insultos -, fez aquilo que lhe restava fazer. Quer se queira, quer não, ele faz parte da história da música em Portugal. Sozinho, ou com Ary dos Santos, ou para algumas das vozes mais apreciadas do público de hoje - Carminho, Carlos do Carmo, Marisa, são incontáveis - fez alguns dos temas que irão perdurar enquanto nos for permitido ouvir música. Pouco importa quem é o homem; isso fica reservado para a intimidade de quem o conhece. Eu conheço-o: é um tipo simpático e cheio de humor, que está bem com a vida e que, ontem, partiu com uma mala às costas e uma guitarra na mão, aos 65 anos, cansado deste país onde, mais cedo do que tarde, aqueles que o mandam para Cuba, a Coreia do Norte ou limpar WC's e cozinhas encontrarão, finalmente, a terra prometida: um lugar onde nada restará senão os reality shows da televisão, as telenovelas e a vergonha. Os nossos governantes têm-se preparado para anunciar, contentíssimos, que a crise acabou, esquecendo-se de dizer tudo o que acabou com ela. A primeira coisa foi a cultura, que é o património de um país. A segunda foi a felicidade, que está ausente dos rostos de quem anda na rua todos os dias. A terceira foi a esperança. E a quarta foi o meu pai, e outros como ele, que se recusam a ser governados por gente que fez tudo para dar cabo deste país - do país que ele, e milhões de pessoas como ele, cheias de defeitos, quiseram construir: um país melhor para os filhos e para os netos. Fracassaram nesse propósito; enganaram-se ao pensarem que podíamos mudar. Não queremos mudar. Queremos esta miséria, admitimo-la, deixamos passar. E alguns de nós até aí estão para insultar, do conforto dos seus sofás, quem, por não ter trabalho aqui - e precisar de trabalhar para, aos 65 anos, não se transformar num fantasma ou num pedinte - pegou nas malas e numa guitarra e se foi embora. Ontem, ao deitar-me, imaginei-o dentro do avião, sozinho, a sonhar com o futuro; bem-disposto, com um sorriso nos lábios. Eu vou ter muitas saudades dele, mas sou suspeito. Dói-me saber que, ontem, o meu pai se foi embora.»

João Tordo, 19/Fev/2014




17 comentários:

  1. Os insultos vieram provavelmente de jovens mal formados. Não acredito que pessoas da sua faixa etária que bem o conheceram ou pessoalmente ou como o grande artista que foi /é, tivessem a coragem de escrever tais comentários. Ou estarei errada na minha apreciação sobre o público português em geral que talvez tanto o tivesse aplaudido no passado?! Lamentável. Vergonhoso, direi…

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  2. Hoje já li várias vezes a carta e também a resposta de Fernando Tordo ao filho. Senti sempre um arrepio a percorrer-me a espinha. Agora mesmo, mão amiga fez-me chegar alguns posts do Blasfémias ( tudo gente crescidinha)e tremi de raiva. Aquela gentalha de extrema direita merecia ser sodomizada para ver se mudavam de postura. Nunca li tanto ódio num blog como naquela trampa. Desculpe o desabafo, Graça.

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  3. Foice!

    Deixou de
    pegar o touro
    pelos cornos da desgraça

    (li a carta e passei a seguir o blog do João Tordo, hoje)

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  4. Gosto do pai e gosto do filho!
    Uma enorme tristeza nesta partida! :(

    Abraço

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  5. Foi-se embora mas continua nos corações de muitos dos que cá estão.
    É um escândalo que não haja quem crie condições para que isto não aconteça,
    a começar pelo governo e pelas televisões que desperdiçam milhões em meninas para porem o umbigo ao léu e a rapazinhos engraçados.
    A azia dos asnos frustrados que escoicinham para mostrarem a porcaria que são é o sintoma da degradação do reino de sua majestade belenense.

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  6. ~ Repito um comentário que já fiz hoje:
    - Um país de pobres com um governo liderado por pobres de espírito! ~

    ~ Presentemente, cantam e louvam as pseudo vitórias das suas políticas, que afirmam ser um sucesso comprovado; passando por cima de tantos sacrifícios e das miseráveis pensões que pagam aos seus idosos.

    ~ Nunca se viu Portugal tão coberto de opróbio! ~

    ~ ~ ~ Que o Fernando encontre paz, dignidade, carinho e inclusão. ~ ~ ~

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  7. Conhecia a carta, e conheço a resposta.
    O Fernando Tordo conheci-o na viagem entre Lisboa e Londres, quando vinha a caminho de Macau, em 1995.
    E ficámos amigos.
    Misturar politiquices com canções, com grandes autores e intérpretes, traz-me sempre à memória um concerto inolvidável do Sérgio Godinho na Queima das Fitas em Coimbra.
    Quando um idiota da Comissão começou a fazer essa mistura foi brindado com um monte de tomates na tromba.
    Que era o mínimo que merecia.
    Beijinhos

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  8. Agora que houve este abanão na letargia, fala-se no Fernando, eu sou amigo dele da música, e no Facebook, já tínhamos trocado e-mails a propósito de um post que eu escrevi sobre o programa de passagem de ano na RTP Memória, o espetáculo "Só nós Três", ainda ele não tinha divulgado esta sua intenção de emigrar.
    Ninguém pode duvidar das suas capacidades artísticas, a sua música está aí e vai prevalecer, como outras durante muitos anos. Como diz o filho, é uma pessoa com defeitos, quem os não tem?
    Ele parte, voltará ou não, mas a sua obra fica, e perdurará para desespero dos medíocres, e gente reles, para quem a arte é algo que não faz parte do seu dia a dia.

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  9. é mais um reflexo do país em que nos tornámos...

    só para a camarilha do Portas e do Coelho é que as coisas estão a melhorar. aliás, nunca pioraram.

    abraço Graça

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  10. Não é pela saída do Fernando Tordo que vamos ficar "sem música", ponham os ouvidos no governo...
    :(

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  11. ~ Quem não conhece o Pedro Coimbra, poderá pensar que ele teve a intenção de vaiar-me e ao João Tordo, por culpalizarmos o governo pela situação degradante dos reformados portugueses que nem recursos têm, para pagar os seus medicamentos.
    ~ Mas não é o caso, como podem constatar na sua postagem de hoje, em que põe em causa a existência de um estado de direito em Portugal, devido ao espoliamento de pensões para as quais foram feitos todos os descontos necessários: ""Devaneios a Oriente - Blogger""

    ~ Pedro Coimbra, apenas corroborou a intervenção da Catarina, referin-se ao modo como o Fernando foi tratado por adeptos facciosos da direita política, que não sabem respeitar arte, nem um notável lutador da liberdade.

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  12. Oxalá possa viver com dignidade na cidade de Recife. Eu tenho essa esperança! Sobre o que se passa por cá, nem é bom falar.

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  13. Nunca fui fã de Fernando Tordo, ou, melhor dizendo, da sua voz. Mas não posso deixar de reconhecer o seu enorme contributo para a música popular nacional.

    Como já comentei por aí, o que me choca mais em tudo isto é outra crise nacional de que pouca gente fala: as mentalidades mesquinhas e invejosas que pululam por aí. E inveja de quê? Da reforma de miséria?!?

    Beijocas

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  14. Amiga Graça, cada dia que passa fico mais triste com o que se passa neste país que já não reconheço.
    Fico triste com estas decisões, pois ficamos mais pobres culturalmente e fico ainda mais triste com os estes lamentáveis comentários.
    Como é possível já não haver respeito por ninguém.


    beijinho




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  15. Exactamente, Majo.
    Mas hoje apanhei uma grande (desagradável) surpresa.
    Não é o Blasfémias, carlos.
    O Blasfémias só reproduz uma notícia do "i" :(

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