«Depois disso voltei por algum tempo a Lisboa, onde cheguei no verão de 2008.
Achei Lisboa uma cidade triste. Para onde quer que olhasse era incaracterística, cheia de grandes construções banais. A parte mais recente não valia uma visita. Tinha um ar de subúrbio mal alinhavado, provinciano, crescendo em volta de centros comerciais gigantescos.
Por todo o lado a recolha do lixo era um desastre, havia bueiros por limpar, esgotos deficientes, calçadas de pedra esburacadas, pavimentos de alcatrão em péssimo estado, jardins públicos decrépitos, edifícios degradados, património histórico ao abandono.
A nível social e económico uma crise imensa instalara-se, embora o governo todos os dias negasse essa evidência.
Mas estava lá, visivelmente, e não era apenas resultado da crise da Europa e do mundo. Vinha da incompetência, da corrupção e dos maus governos, que não tinham vontade política de emendar os erros estruturais, que por isso se repetiam sempre.
Procurei a Lisboa das gaivotas, do céu claro, do rio, mas vinha ao meu encontro a outra, a sopa dos pobres no Intendente, dos sem abrigo, dos drogados, dos desempregados, dos mendigos em que tropeçava a cada passo, um rapaz de tronco nu e de cabeça baixa com uma lata na mão, ajoelhado na rua como se estivesse à espera de que o flagelassem, cegos percorrendo o metro, um deles a debitar uma ladainha, batucando com as mãos numa caixa de lata, um compasso descontrolado e nervoso: olhem que eu agradeço a quem tiver a bondade ou a possibilidade de me auxiliar, olhem que eu agradeço a quem tiver a bondade ou a possibilidade de me auxiliar, olhem que eu (e entretanto seguia para a carruagem seguinte, a sua voz ia ficando mais longe até que deixava de ouvir-se).
O desalento, a tristeza no rosto de quem passava. Não era genética nem endógena, vinha da constatação de que os poderosos nos traíam, e pagávamos sempre a factura. O país dava aparentemente um passo em frente, mas em vez de avançar retrocedia. (…)
O desemprego crescia de forma alarmante, a dívida externa era insustentável, havia falta de transparência nas contas públicas, o Banco de Portugal e a CMVM não fiscalizavam, a justiça não funcionava, a economia estagnara, havia falta de competitividade (os ministros diziam competividade), o governo pretendia lançar grandes obras públicas desnecessárias ou inoportunas, que iriam agravar exponencialmente a dívida e os juros durante gerações, o poder económico estava ligado ao poder político, multiplicavam-se as empresas público-privadas que faziam negócios ruinosos para o erário público, o aparelho de estado crescia em parar, a lógica do sistema era irracional e estava fora de controlo e a única solução era sempre cortar nos salários e sobrecarregar os contribuintes. Os pequenos contribuintes, porque os grandes escapavam entre as malhas do fisco. Todos os dias havia mais pessoas da classe média a descerem ao limiar da pobreza, ou mesmo abaixo dele.»
“A Cidade de Ulisses” Teolinda Gersão, ( Março/2011)
A professora Teolinda Gersão era, juntamente com as professoras Yvette Centeno e Leonor Teles, assistente da disciplina de Teoria da Literatura quando entrei na Faculdade de Letras em 1966. Tinha um ar antipático como quase todos os professores do meu curso naquele tempo. Quando o catedrático da cadeira, o Professor Monteiro Grilo – poeta sob o pseudónimo Thomas Kim – morreu de ataque de coração em pleno Rossio, em Fevereiro desse ano letivo, e depois de o Professor e poeta David Mourão-Ferreira arrogantemente declarar que não dava aulas a alunos do 1º ano, ficámos como que órfãos e tivemos de recorrer às professoras assistentes para que nos “adoptassem” nas suas aulas. Lembro-me de andarmos, nós alunas de Germânicas, feitas baratas tontas a correr de turma em turma a ver quem quereria ficar connosco. Lembro-me, por acaso, que as professoras Teolinda e Yvette foram por de mais altivas negando-se a deixar-nos matricular nas suas aulas.
Depois de terminar o curso, “enfronhei-me” de tal modo no trabalho com os alunos e embrulhei-me de tal modo nos meandros da vida familiar que nem dei conta da trajeto docente em Berlim, nem do início da carreira de escritora da antiga professora Teolinda Gersão aí pelos anos 80. Teria passado o milénio quando tive tempo para ouvir falar nas suas obras e só este ano me deu para comprar um dos seus livros, este, A Cidade de Ulisses, por se tratar de Lisboa.
É um livro bonito, com realidade histórica e com uma bela história de amor, além de que está muito bem escrito. Porém quando a breves 20 ou 30 páginas do final me dou com esta descrição (e outras) altamente tendenciosa e consentânea com uma forçada vontade de destituir o governo por parte do presidente da República e do seu séquito de direita, confesso que me desgostou. Pela altura em que o livro saiu para as bancas, a autora deu uma ou outra entrevistas que ouvi por curiosidade de ver a antiga professora de há quarenta e tal anos, e lá veio ela com as palavras de motivação e apelo à mudança de cor no governo dados os motivos que deixou registados no romance.
A propósito li um qualquer artigo que punha a questão de se deveria um escritor influenciar deliberada e abertamente as decisões políticas dos seus leitores. De facto, isso para mim não é importante nem decisivo. Só gostava, se pudesse, de perguntar à escritora Teolinda Gersão se acha que as pessoas de Lisboa e do resto do país, que agora têm aquele governo que ela tanto quis promover, se sentirão menos tristes, menos desalentadas e menos traídas pelos poderosos.