No Dia Mundial do Gato, aproveito
para transcrever uma crónica deliciosa escrita por (mais) um amante de gatos,
Eugénio Lisboa, que li há anos no Jornal de Letras e que ainda não tinha tido
oportunidade de pôr aqui.
É um pouco longa, bem sei. Mas
não consegui cortar-lhe nenhum dos parágrafos por importantes que são todas as
referências a diferentes vultos da literatura que amavam gatos.
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(Eugénio Lisboa) |
«Diz quem sabe que os gatos
apareceram no nosso planeta, há cerca de sete milhões de anos. Apareceram e, de
então para cá, quase nada mudaram, na sua constituição, porte e funcionamento.
Este “mínimo tigre de salão”, como lhe chamava Neruda, numa das suas belas
odes, apareceu para ficar, durar e fascinar – ainda hoje, tal como no primeiro
dia. Veio logo com formato definitivo, marimbando-se para a lei da evolução,
que só dá para se aplicar aos outros animais.
Por isso alguém disse, com um
acinte que apetece aplaudir: com o gato, Deus acertou à primeira. O gato veio
perfeito e assim tem permanecido. Quando a Igreja Católica quis arranjar
argumentos para uma briga com Darwin, esqueceu-se do gato, isto é, desperdiçou
o único argumento decente que tinha à mão: porque, se o homem descende,
inconvenientemente, do macaco, o gato descende apenas do gato, sem qualquer
intermediário que lhe obscureça o trajecto.
Tenho toda uma biblioteca
consagrada ao gato (felideoteca?) e nela colho, diariamente, renovadas e
acrescentadas razões de apreço e de afecto pelo elegante felino (sem falar, é
claro, nas aulas práticas com a Secotine). O gato é, obviamente, o animal
superior da criação. Concordo inteiramente com Mark Twain – de quem o Nobel,
como é seu costume, se esqueceu – quando diz que, se o homem se cruzasse com o
gato, melhoraria o homem, mas deteriorar-se-ia o gato. O gato tem sido
consagrado e até venerado por tudo quanto é gente de gabarito. A minha
felideoteca que o diga! Numa das duas edições da Enciclopédia Britânica, que
possuo, pode ler-se isto, que ponho à vossa consideração: “A personalidade
independente do gato, combinada com a sua graciosidade, limpeza e com os seus
subtis sinais de afecto, são traços que têm um vasto apelo”. Ogden Nash, o celebrado
autor de poesia humorística, dizia, num dos seus poemas, que o problema com os
gatinhos era eles tornarem-se, eventualmente, gatos. Esta afirmação prova,
entre outras coisas, que Nash nada percebia de gatos, caso contrário, saberia
que, para um verdadeiro amante de gatos, um gato é eternamente um gatinho.
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(Mark Twain) |
Nash, felizmente, é excepção. Os
amantes de gatos são legião, se exceptuarmos algumas criaturas execráveis, que
a história regista: Júlio César, que tinha horror a felinos e morreu
assassinado (justiça transcendente?), os papas (três!) Gregório IX, Inocêncio
VII e Inocêncio VIII, a Rainha Elizabeth I (bem feito, morreu virgem!), o
imortal bardo de Stratford, que congeminou o Hamlet, mas sempre se referiu
maldosamente ao mais gracioso animal da criação, o Rei-Sol, Luís XIV, que
dançava à volta de gatos que mandava lançar à fogueira, Napoleão Bonaparte, o
compositor Johannes Brahms, que se entretinha a disparar setas contra os bichos
indefesos, a dançarina e coreógrafa Isadora Duncan, e, por fim, o general
Eisenhower, que proibiu gatos na Casa Branca, enquanto presidente – tudo gente
horrível, mal disposta e, no fundo, sem o mais pequeno sentido estético. Mas
estes são a triste excepção e, como muitos dos amantes do Felis Catus são
ficcionistas e poetas, não se cansam de incluir o gato nos seus romances e
contos, como protagonista de relevo, ou de o cantar e exaltar, nos seus poemas:
Victor Hugo, Balzac, Théophile Gautier, Perrault, Alexandre Dumas, Colette,
Thomas Hardy, Kipling, Mark Twain, Lewis Carroll, La Fontaine, Swinburne,
Shelley, Keats, Edward Lear, Matthew Arnold, Jonathan Swift, Oscar Wilde, Zola,
Arnold Bennett, Anatole France, Ford Madox Ford, Emily Dickinson, Petrarca,
Yeats, Pierre Loti, Jean Cocteau, Simenon, P. G. Wodehouse, Ernest Hemingway,
Saki, Walter de La Mare, Louis Macneice, T. S. Eliot, Don Marquis, Ted Hughes,
Ambrose Bierce, Stevie Smith, Patricia Highsmith, A.L. Rowse, Eça de Queirós,
Miguel Torga prestaram homenagem, nas suas prosas e nos seus versos, ao
inimitável Catus.
De todos eles, tenho testemunhos
cintilantes em livros e antologias. Baudelaire tinha pelo “mínimo tigre de
salão” uma verdadeira paixão: quando ia a casa de algum amigo, mostrava-se
extremamente nervoso, enquanto lhe não aparecia o gato da casa; quando este,
finalmente, se dignava aparecer, o poeta pegava-lhe, acariciava-o, beijava-o,
falava-lhe, inteiramente esquecido dos donos da casa a quem mal ou
distraidamente respondia. A sua empatia e quase identificação com os felinos
era tão grande, que alguém descreveu o poeta das Flores do Mal como “um gato
voluptuoso e blandicioso, com as suas maneiras aveludadas.”
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(Hemingway) |
O compositor russo Borodine vivia
literalmente rodeado de gatos, a quem dava todas as liberdades. Com visitas em
casa, os bichos saltavam para cima da mesa do jantar, sem que ao músico
passasse pela cabeça enxotá-los. A romancista Colette, universalmente admirada
por tudo quanto tinha nome de escritor, viajava com os seus gatos e levava-os
para os hotéis onde, ocasionalmente, se aboletava. E escreveu um romance, ainda
hoje famoso, La Chatte, no qual, em luta com uma mulher, pelo amor de um homem,
a gata vence. Ao seu magnífico gato angorá, Victor Hugo deu o nome de Gavroche,
o pequeno herói das barricadas, do romance Les Misérables. Foi sua grande e fiel
companhia, durante o prolongado exílio na ilha de Guernesey, mas não teve o
destino grandiosamente trágico do pequeno Gavroche: envelheceu, engordou e
amolengou-se, passando a chamar-se “O cónego” (Le Chanoine). Hemingway, o homem
das grandes caçadas africanas e da pesca graúda em Havana, vivia, na sua Finca
La Vigia, em Cuba, rodeado, não de canzarrães temíveis, mas sim de gatinhos a
granel (chegou a ter trinta e quatro). O romance For whom The Bells Toll foi
escrito numa secretária atapetada de gatos ciosos (como é conhecido o ciúme que
os felinos têm do papel em que escrevemos, presume-se que o romance deva ter
levado, a ser escrito, o dobro do tempo que levaria... sem gatos!) Mark Twain
era de opinião que uma casa sem gatos devidamente apaparicados não era uma casa
digna desse nome. Mas, aos bichos, gostava de dar nomes arrebicados:
Apollinaris, Zoroastro, Blatherskite (Parlapatão), ou Sour Mash (Mixórdia
Azeda): tudo maneiras de lhes exprimir o seu carinho. De resto, Eliot, num
poema cuja tradução dediquei à generala a quem agora co-dedico este texto,
explicava que os gatos precisam de ter nomes invulgares e improváveis, sem o
que não conseguem manter a cauda perpendicular (ele queria dizer, é claro,
“vertical” e não “perpendicular”, mas, por um lado, não percebia nada de
geometria nem de Física, por outro, a palavra “perpendicular” é mais longa e
aparatosa). Mark Twain não tinha lido Eliot, mas chegara à mesma conclusão por
simples intuição e por ter, com os gatos, longas e amigas conversas.
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(Manuel António Pina) |
Quando se gosta destes sábios
felinos, eles tomam, por completo, conta de nós, até porque sabem muito bem que
o homem foi feito para servir o gato. Tanto que Evelyn Underhill não se pejava
de confessar: “Acaba de me ser dado um gatinho persa extremamente sedutor... e ele
é de opinião que eu lhe fui dada a ele.”
Esta crónica vai longa, mas se o
leitor pensa que a matéria – literatura com gatos – está esgotada, anda muito
enganado. O tema é inesgotável e, por isso, voltarei a ele.»
Eugénio Lisboa
JL, Dez/2010