terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Outro conto de Natal





A artrose das renas

«Numa das muitas desórbitas do planeta, todos os anos Art esperava este momento. Sentia-o aproximar quando focava de longe as primeiras luzes e enfeites. Ultimamente sentia-se um pouco perplexo porque os sintomas do Natal cada vez se antecipavam mais. Talvez este ano venha mais cedo. Começava a preparar a viagem com minúcia e depois o Natal demorava a chegar, depois das luzes nas ruas e os enfeites das lojas, quero eu dizer.

Art estava mais atento desde que o Natal se tinha tornado imprevisível e agora contava com mais uma preocupação: as renas este ano estavam surpreendentemente menos ágeis. Quanto a Art, era apenas o que queriam dele durante uma noite por ano. Mas exultava sempre com a ideia de partilhar este momento em que o espaço e o tempo se dissolvem num fluxo de deleite temporário.

Esta noite, Art tinha como destino um pequeno país à beira-mar. Gostava do cheiro salgado e, talvez por isso, sentia um entusiasmo adolescente quando iniciou a viagem. Mas cá em baixo, Art pôs-se a pensar que tudo tinha sido um desencontro, que tinha confundido a noite inconfundível e acabado por vir numa qualquer noite de um inverno frio. Tinha despercebido os sintomas. Com certeza. Pousou em todos os pousos do país para ver se o Natal se avistava em algum lugar. Sentia a desilusão tingir-lhe as roupas, enquanto ia observando as ruas sem vida, as lojas à espera de ninguém.

Ao olhar para dentro de uma casa, Art viu crianças a rondar com esperança a árvores iluminada, a despejar o desejo dentro da chaminé, e soube de súbito que, estranhamente, era Natal. Também soube de sentir que alguma cosa no dentro das pessoas tinha mudado este ano. Essa coisa tinha varrido o cheiro inebriante da alegria da ceia, o frenesim dos fogões acesos, o giro das mãos em torno da felicidade, o sorriso dos lábios em vaivém, as prendas com os laçarotes escondidas no armário. Tudo estava em eclipse, um eclipse que não se esgotava no tempo dessa noite.

Art não sabia o que pensar. O seu carro de Pai Natal arrastava-se nos ares de um lado para outro. O saco das prendas estava pouco mais do que assimetricamente vazio. Havia muitas prendas para poucos natais, como ilhas num oceano de chaminés vazias.

Ao pousar nesta outra cidade, o trem de aterragem das renas não desceu e andaram aos tombos no chão duro. Art verificou os danos: nada partido; só as pernas das renas tinham ficado doridas. Ao acariciá-las docemente, os seus olhos mergulharam nos olhos meigos das renas e viu lá no fundo que o entorpecimento delas – que o preocupava desde há meses – não vinha do reumatismo, ou de outra doença qualquer. Mais argutas do que ele, as renas já deviam ter pressentido nos seus músculos tristes o que Art só agora compreendia.

- Está boa, está! Eu a pensar que as minhas renas tinham artrose. Afinal, artrose bem grave tem a cabeça de quem governa este país!»

Rosa Alice Branco

Jornal de Letras, 14 – 27 de Dezembro de 2011   

 

9 comentários:

  1. Estou com artrose também!
    Talvez amanhã diga mais alguma coisa! :-))
    Deixei-te um presente no meu mural do FB!

    Abraço

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  2. Bonito texto.

    Artrose? Isso é coisa que dá no cérebro do pessoal governante e afim, não é?
    Ah! Sei de muitos deputados que estão a queixar-se do mesmo mal.

    Coitadinhos...

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  3. Carol
    E entretanto somos nós que ficamos com elas de pensar tanto em como vamos fazer para sobrevivermos, eu já tenho algumas que me dão que fazer, mas ainda não chegaram ao cerebro.

    Beijinho e venha mais um conto.

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  4. Vai-se a ver o Art é um Art...ista!...
    ...
    Não estive, mas não me esqueci de estar. E mesmo que Natal seja quando se quiser (e for possível...), é sempre possível um abraço!
    Felicidades!

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  5. Oi Carol, vim desejar-te um Natal muito feliz, e que 2012 seja repleto de saúde e alegrias.
    Beijos

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  6. Com "mil" coisas para fazer passei para desejar um Doce a Feliz Natal para ti e todos os que te são queridos.
    Prometo que vou ler os contos todos.

    Um beijinho

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  7. carol

    O conto está muito bom só que os nossos governantes são acéfalos, logo não sei se sentirão a dor física das artroses.

    BOM NATAL!

    Beijo

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