quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O meu Professor Vitorino Nemésio



Última aula de V. Nemésio em 9/12/1971


Eu vira a notícia no Jornal de Letras que o António Mega Ferreira, meu diário companheiro de comboio Sintra-Lisboa no tempo de Faculdade (ele entrava no Algueirão e sentava-se sistematicamente no assento frente ao que eu utilizava na carruagem de 1ª classe e que, por isso, ia mais vazia. Líamos, estudávamos no comboio, sabíamo-nos colegas, eu de Letras, ele meu vizinho de Direito. Nunca nos falámos, porém. Mais por timidez da parte de ambos do que por pretensa arrogância – da parte dele, claro!) ia promover uma homenagem ao Professor Vitorino Nemésio lá no (seu) Centro Cultural de Belém, no dia 18.

Logo anunciei que gostaria muito de assistir à comemoração que começaria por uma mesa redonda sobre o Homem e a sua Obra, onde iria participar o também meu professor igualmente açoriano António Machado Pires, à época assistente de Nemésio. Não vou esquecer nunca a sua figura magra, testa alta de pessoa inteligente, cabelo ondulado posto para trás algo despenteado e o olhar fixamente atento, na primeira fila do anfiteatro, perscrutando todas as palavras do Mestre que, quando se perdia no discurso das aulas teóricas – e isso acontecia não raramente – se virava para ele e dizia seguro da prontidão da resposta: «Ó Machado Pires, como se chamava aquele escritor....?» O Machado Pires (que era um querido de um professor mas a quem, não obstante, um grupinho de meninas tontas – eu incluída, naturalmente! – trataram de chamar por brincadeira por “carapau para o gato”) assegurava e bem! as aulas práticas da cadeira de História da Cultura Portuguesa que os alunos de Germânicas tinham no seu plano de estudos do 2º ano. E era ele, de facto, que “nos ensinava alguma coisa” e nos punha os limites da matéria que haveríamos de saber e de estudar para o exame porque o Mestre, nas aulas teóricas, fazia um pouco como no programa “se bem me lembro” que manteve durante anos na RTP, divagava dentro da sua extensíssima e variadíssima cultura.

A homenagem no CCB seguiria com a leitura do texto que serviu de base à última lição dada pelo Professor no habitual Anfiteatro I da minha Faculdade e que ocorreu no dia 9 de Dezembro de 1971, ano em que terminei a minha licenciatura, a que não assisti ao vivo por estar casada há meia dúzia de semanas e porque, na época, as notícias não corriam, como hoje, à velocidade dos e-mails ou do Facebook. Por fim, realizar-se-ia a projeção do documentário “Vitorino Nemésio – Viagem” sobre a vida e depoimentos sobre a vida do Professor, enquanto escritor, poeta e grande homem de cultura.

Um programa que, pensei, me encheria as medidas.

Acabei por não ir, facto que se deve – como me acontece amiúde – à provincialidade, termo que inventei agora mesmo por paralelo à insularidade de que gozam os habitantes das Ilhas, leia-se Regiões Autónomas. Só que estes tiveram sempre e têm, por enquanto, um subsídio que lhes cobre, ou pretende cobrir, a dita insularidade; enquanto nós, os que vivemos (contrariados) “na província” não auferimos de qualquer abono que nos subsidie as idas à capital...

Mas tive pena. E, em jeito de homenagem caseira ao Professor, relembrei a sua imensa bonomia – quando tive de fazer a prova oral (nesse tempo na Faculdade de Letras não havia lugar a dispensas das orais) de Cultura Portuguesa, umas orais antes da minha, estava a ser examinada uma colega não sei de que curso que, em plena sala de exame, se largou a chorar (episódio que acontecia muitas vezes nas orais dada não só a eventual falta de preparação dos alunos, mas muito mais pela imensa timidez de que sofríamos nesse tempo cinzento de fechadismo pessoal, cultural, social, moral e de toda a ordem). Perante a moça que se desfazia em lágrimas, o bom do Professor, também quase de lágrima no olho e com a voz trémula, tratou de dizer: «Vá-se lá embora que eu não posso ver ninguém a chorar.» E não a chumbou!

Lembrei-me de como foi ele que “me iniciou” na leitura de Fernando Pessoa partindo da Mensagem para o estudo dos símbolos e dos mitos nacionais, nomeadamente do sebastianismo, do messianismo e do saudosismo de que sofremos desde tempos imemoriais sem quase nos darmos conta.

Lembrei-me da loucura dos apontamentos que tínhamos de tirar nas aulas teóricas e que dificilmente tinham sequência dada a dispersão de pensamento do (grande) Professor que, sem que nos apercebêssemos estava a anos luz de nós em todos os sentidos. E dispersão por dispersão, dispersávamo-nos nós, tontas meninas, e acabávamos por brincar nas suas aulas. Por vezes, perante alguns comportamentos menos próprios de alunos já na casa dos 18, 19, 20 anos – o que naquele tempo deveria ser já idade para grandes responsabilidades – o Professor interrompia a sua peroração e dizia com muita graça: «Se não querem estar com atenção à aula, durmam, façam a tradução de latim escrevam uma carta à namorada, mas estejam calados!»

Quem disse que os alunos só agora se portam mal?



 
Página de apontamentos de aula "normal"


Página do mesmo caderno noutra aula...

8 comentários:

  1. Carol

    Quem não divagou, quem não rabiscou, quem não conversou?

    Do Professor lembro-me do "se bem me lembro...", das suspensões das frases como se as palavras se lhe estivessem a tomar forma num pensamento que se avolumava e sobrepunha a outro pensamento. E cada suspensão era como o aguçar da imaginação de quem o ouvia...

    Ouvi-lo era como comer cerejas.

    Beijo

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  2. Nest post
    eu sou o aluno
    a Carol a professora
    (sem ironia)

    PS: Que pena hoje em letras não serem obrigatórias as provas orais,
    hoje em que há "lata" a mais...

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  3. Querida Carol
    O meu plano de estudos não me facultou o privilégio de ter Vitorino Nemésio como professor mas lembro-me bem do comunicador por excelência que conheci no "Se bem me lembro..." que nos deixava sempre com vontade de continuarmos a ouvir as suas riquíssimas divagações!
    "Mau Tempo no Canal" é um dos meus livros preferidos e embora tenha sempre dificuldade em fazer declarações destas não vacilo nada ao dizê-lo!
    Quanto ao teu texto vê-se nele o reflexo do Mestre!

    Abraço

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  4. Essa da provincialidade é aquilo a que eu chamo uma bucha bem metida...
    :)

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  5. Adorei este relato, Carol.
    quanto a Vitorino Nemésio, lembro-me bem de não pere nenhum dos seus programas na RTP ( ao domingo, "Se bem me lembro")

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  6. Querida Carol, ainda guarda os apontamentos dessas aulas? Onde já vão os meus apontamentos da faculdade. E tiravam-se folhas e folhas deles, por aula, que os grandes mestres eram mesmo assim: deambulavam pelos assuntos e no fim quando chegávamos a casa, era um 31 conseguir compilar aquilo tudo... Como será agora?
    Mas teve o privilégio de ter esse grande ícone, como mestre! :)

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  7. Era, de facto, um Homem de cultura, um Senhor, e um querido!

    Manuela, ainda guardo todos os cadernos de todas as cadeiras do curso - e foram 27! Naquele tempo as licenciaturas tinham cinco anos e muitas cadeiras. Agora... é diferente...

    Obrigada, meus queridos amigos, pelas vossas palavras sempre tão simpáticas.

    Beijinhos.

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  8. Estimada Amiga Carol,
    Tive o pregilegio de conhecer pessoalmente o Dr. Vitorimo de Nemesio, numa das vezes que fui a Faculdade de Letras em Lisboa.
    A minha tia, era a bibliotecaria da Faculdade, chamava-se Felizarda.
    Pois mais sei sobre esse digno Professor, mas pena foi nao ter podido assistir ao evento.
    Um abraco amigo

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