quarta-feira, 14 de junho de 2017

Fernando Pessoa e o Santo António

Foi exatamente no dia de Santo António que Fernando Pessoa nasceu. Em 13 de Junho de 1888. Há 129 anos.


E, sensível como era, o poeta não ficou indiferente a esse facto. Escreveu mesmo um enorme poema de que deixo aqui alguns excertos.


«Nasci exactamente no teu dia —
Treze de Junho, quente de alegria,
Citadino, bucólico e humano,
Onde até esses cravos de papel
Que têm uma bandeira em pé quebrado
Sabem rir...
Santo dia profano
Cuja luz sabe a mel
Sobre o chão de bom vinho derramado!

Santo António, és portanto
O meu santo,
Se bem que nunca me pegasses
Teu franciscano sentir,
Católico, apostólico e romano.


(Reflecti.
Os cravos de papel creio que são
Mais propriamente, aqui,
Do dia de S. João...
Mas não vou escangalhar o que escrevi.
Que tem um poeta com a precisão?)

Adiante ... Ia eu dizendo, Santo António,
Que tu és o meu santo sem o ser.
Por isso o és a valer,
Que é essa a santidade boa,
A que fugiu deveras ao demónio.
És o santo das raparigas,
És o santo de Lisboa,
És o santo do povo.
Tens uma auréola de cantigas,
E então
Quanto ao teu coração —
Está sempre aberto lá o vinho novo.

Dizem que foste um pregador insigne,
Um austero, mas de alma ardente e ansiosa,
Etcetera...
(…)

Valem mais que os sermões que deveras pregaste
As bilhas que talvez não concertaste.
Mais que a tua longínqua santidade
Que até já o Diabo perdoou,
Mais que o que houvesse, se houve, de verdade
No que — aos peixes ou não — a tua voz pregou,
Vale este sol das gerações antigas
Que acorda em nós ainda as semelhanças
Com quando a vida era só vida e instinto,
As cantigas,
Os rapazes e as raparigas,
As danças
E o vinho tinto.
(…)

(Qual santo nem santeza!
Deita-te noutra cama!)
Santos, bem santos, nunca têm beleza.
Deus fez de ti um santo ou foi o Papa? ...
Tira lá essa capa!
Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico
Em fantasia, promoveu-te a manjerico.
(…)

Sê sempre assim, nosso pagão encanto,
Sê sempre assim!
Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,
Esquece a doutrina e os sermões.
De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.
Foste Fernando de Bulhões,
Foste Frei António —
Isso sim.
Porque demónio
É que foram pregar contigo em santo?


O poema completo fica aqui

16 comentários:

  1. Não conhecia.
    Obrigada pela partilha.
    Abraço e bom feriado.

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    1. Eu é que agradeço as suas visitas amáveis e constantes.

      Beijinho.

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  2. Tinha 46 anos quando o escreveu...
    Prefiro as suas quadras populares juvenis, regadas com uma boa bica,
    a este poema desbocado de ''vencido na vida'', provavelmente
    regado
    com algum líquido ardente...
    Uma vida que todos lamentamos.

    «S joão, S joão, dá cá o balão...»

    Beijinho
    ~~~~

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    1. Uma coisa é a vida que os autores e os artistas brilhantes escolhem levar e outra coisa é aquilo que escrevem. Eu pessoalmente acho que Pessoa foi um homem de uma extraordinária inteligência e um domínio da língua ora de série. Gosto. Sempre gostei.

      S. João, S. João, dá cá uma balão
      Para eu brincar...

      Beijinho.

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  3. Uma novidade (das boas!!) para mim.
    Beijinhos

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  4. Santo de contradições
    bem humano é portanto
    tão bom o seu encanto
    que conserta das moças corações

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  5. Por muito que se leia Pessoa, sempre nos surge algo inédito.
    Gostei deveras do poema; longo, mas precioso.
    Obrigada, Graça.

    Beijinhos, bom feriado! :)

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    1. E o que mais estará por descobrir e por estudar...

      Beijinho.

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  6. Um dos grandes homens nascidos em Junho.

    Um poema menos conhecido, mas mesmo a calhar com a data em questão. E para rimar, vem aí o São João. Conheces algum poeta português que tenha nascido nesse dia?

    Continuação de um domingo poético 😇

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    1. Vou à procura... Mas o Pessoa também o fez.

      Beijinhos poéticos.

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  7. A tal ideia peregrina de que tudo o que FPessoa escreveu é sagrado, como se fosse o autor da bíblia...
    Eis a prova cabal de que muita tolice ficou armazenada na tal arca que guardou a criatividade, o engenho, mas também a miséria da vida de uma génio profundamente desadaptado ao seu tempo, cuja reclusão dedicada à escrita não incomodou ninguém, mas que veio a surpreender todos com o achado da arca...
    Muito sinteticamente, foi uma pessoa que nunca se adaptou à turbulenta república, nem ao acordo ortográfico que o obrigava a escrever, horrorizado, pharmacia com um f...
    Viveu sempre condicionado pela posição social, 'status' e censura da sua distinta família, da qual passou a ser o 'titio' solteirão.
    Inconformismos que o levaram a falecer tão cedo de cirrose...
    ~~~ Beijinhos literários ~~~

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    1. Os grandes génio têm sempre dificuldade em adaptar-se à vidinha de pessoas ditas normais... O mesmo terá acontecido com Camões.

      Beijinhos literários...

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