Ontem à noite, quase por acaso,
assisti a um excelente programa na RTP2 sobre Mário de Sá-Carneiro, poeta de
Orpheu, no centenário do seu suicídio que aconteceu precisamente no dia 26 de Abril
de 1916, no seu quarto do Hotel de Nice em Paris.
Foi o programa “O Estranho Caso
Do Mário De Sá-Carneiro” com comentários de estudiosos do Orpheu e dos seus
poetas como Richard Zenith, Fernando Cabral Martins, Jerónimo Pizarro, Rui Afonso
Santos e Eduardo Lourenço.
O poeta, diretor – com Fernando
Pessoa – da bombástica revista Orpheu, cujos dois únicos números foram editados
em 1915 a expensas do pai de Sá-Carneiro, era esperado em Portugal em Março de
1916, mas por essa altura já ele estava a considerar a hipótese de se suicidar
tomando «uma forte dose de estricnina».
Em 31 de Março escreve uma carta
ao seu amigo Fernando Pessoa em que diz:
Paris - 31 Março 1916
Meu Querido Amigo.
A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na
véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e
desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever
esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas "cartas de
despedida"... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal
tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia
nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma:
eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado
por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não
há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo
há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a
parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas
zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo
me corre, psicologicamente, às mil maravilhas: mas não tenho dinheiro. [...]
Mário de Sá-Carneiro
Poucas semanas mais tarde, Mário
de Sá-Carneiro encenará no hotel onde vive em Paris a sua trágica morte: com
cinco frascos de arseniato de estricnina e um único espectador convidado – José
Araújo – morrerá, depois de um enorme sofrimento, às oito horas e vinte minutos
do dia 26 de Abril de 1916. Os haveres do poeta – uma mala com cartas recebidas
dos seus amigos, nomeadamente de Fernando Pessoa – foram confiscados pelos
donos do hotel como forma de pagamento das dívidas por falta de pagamento. Tinha
apenas vinte e cinco anos.
«Vítima de uma doença moral
terrível e, no fundo incapaz de atapetar a vida contra nós e contra o mundo» (Sá-Carneiro)
«Ele tinha a doença de todos nós, o desalento
crónico.»
Fernando Pessoa dirá dele:
«Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta
vida. Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação.
São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os
busca, nem a glória os acolhe. Ou morrem jovens, ou a si mesmos sobrevivem,
íncolas da incompreensão ou da indiferença. Este morreu jovem, porque os Deuses
lhe tiveram muito amor.»
(In Athena n.º 2, Lisboa, Novembro, 1924.)