Nunca tinha lido nada da Natália
Correia a não ser uns tantos poemas dispersos naturalmente muito bons.
Lembro-me da sua força de Mátria,
da sua voz sonora, poderosa, varonil, a lembrar o Ary, da sua eloquência, da
sua mística açoriana, da sua sabedoria, da sua infindável cultura portuguesa, mundial,
poética, filosófica histórica e simbólica –e porque não dizer (?) maçónica.
Lá no seu Botequim, onde a poesia acontecia noite após noite, reuniram-se
nomes incontornáveis das Letras e da política. (Sobre este organismo vivo que
era o Botequim é obrigatório ler o
excelente livro do Fernando Dacosta O
Botequim da Liberdade.)
Num destes dias de verão,
encontrei naquelas vendas baratas de escoamento de stocks, o seu livro não percas e rosa – diário e algo mais (25
de abril de 1974 – 20 de dezembro de
1975. Considero que se aprende muito sobre a história das épocas nos
diários e nas biografias e, como me interesso muito todo pelo tempo antes e
depois do 25 de Abril, trouxe-o com a vantagem acrescida de custar apenas cinco
euros.
É um documento fascinante por ter
sido escrito «em cima dos acontecimentos». Fascinante pelo pedaço de boa
literatura que nos é dado ler. Fascinante pelo que aprendemos nível da História,
da Filosofia, da Política enquanto ciência. Fascinante pela excelência na
utilização da Língua Portuguesa – se bem que de muito difícil leitura.
No que toca ao conteúdo, parece-me
que há que ser lido tendo em conta o facto de ter sido escrito dia após dia em
cima dos acontecimentos (e que acontecimentos!) e por tal com um enorme excesso
de emotividade, de pressão e de tendência pessoal – até porque se trata de um
diário.
De qualquer modo, se conseguirmos
embrenhar-nos pela floresta de imagens, metáforas e da linguagem algo barroca –
própria de quem sabe muito da sua Língua – e nos mantivermos dentro da possível
equidistância política partidária da época, tomamos contacto com muitos
acontecimentos e com os seus contornos políticos e sociais. Um documento que
ajudará a escrever a História.
Da análise da minha leitura,
destaco alguns aspetos (nem sempre ”simpáticos”):
- A ascendência do mundo sócio-familiar-cultural
em que a autora foi criada e educada (açoriana, classe média alta, tinha cerca de
50 anos à data do 25 de Abril de 74) sobre a mundividência que imprime ao seu
escrito;
- A sua tendência para desvalorizar
a forma como a Revolução aconteceu;
- A sua antipatia «pecêpista» culpabilizando
este partido [e cheia de razão] por tudo o que de pior pôde fazer para
substituir a ditadura fascista que subjugou o país por mais de 40 anos por uma
outra ditadura marxista-leninista;
- O extremo simbolismo poético, sebastianista,
pessoano que está incluído no título que deu ao Diário «não percas a rosa» que
é também o registo com que termina o livro: «Desvenda-se o esfíngico desse
olhar português e fatal com que a Europa fixa obstinadamente o Coração da Rosa.
Completa-se a tua Mensagem, Fernanda Pessoa. Portugal, Portugal, não percas a
Rosa.»
[A Rosa enquanto símbolo da Vida,
da Beleza, do Amor, do Bem Supremo.]
A propósito transcrevo para aqui
o poema O Encoberto, de Fernando
Pessoa, referido por Natália na sua mensagem final.
Que símbolo fecundo
Vem na aurora ansiosa?
Na Cruz Morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.
Que símbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa que é o Cristo.
Que símbolo final
Mostra o sol já desperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.
(in Mensagem, Fernando Pessoa)