Anda o país todo eriçado com as
praxes desde que se deram aquelas seis inefáveis mortes à beira-praia vai para
um mês.
Somos assim. Reagimos apenas quando
algo de muito grave acontece. Somos do tipo reativo e a longo prazo. Uma pena. Um
deixa-andar, um desleixo de pensamento, um desinteresse por tudo (quanto não
seja futebol, voyeurismo, e carros a ganhar
no Cola-Cau) que só se explica pela enorme ignorância e pelo imenso
provincianismo que nos define.
Sempre me crispei (e encrespei)
de cada vez, desde há muitos anos, que via aqui nesta pequena cidade onde vivo,
hordas de miúdos “mascarados” com as capitas pretas (que por história e
tradição apenas se viam em Coimbra) com as caras pintadas com marcadores e com
um penico na mão a berrarem que nem borreguitos desmamados aquilo que um outro
borreguito saído há mais tempo da barriga mãe lhes vociferava ao megafone. E
mais eriçada ainda ficava quando, ano após anos, numa qualquer tarde de 5ªa
feira de maio, se entupia a cidade com carros ditos alegóricos dos cursos
(diziam eles) com récuas de fedelhos insanos atrás a encharcarem-se em latas de
cervejas que emborcavam e arremessavam ao chão deixando no ar um fedor a álcool
e a transpiração absolutamente nauseabundo. Passavam na estrada defronte da “minha”
escola, enlouquecendo os miúdos pté-adolescentes que abandonavam desvairados as
salas de aulas e acorriam imparáveis para os recreios já que aqueles lhes
ofereciam cervejas por entre as grades. Os pais e as mães, muitos bem vestidos
e rebentando de orgulho pelas figuras que os seus meninos-doutores iam fazendo,
apinhavam-se nos passeios para verem o espectáculo do “cortejo” que demorava
horas! E, ao fim da tarde, quando eu saía da escola, ia encontrá-los muitos
deles e delas, perdidos de bêbados, a chafurdarem em T-shirt na fonte luminosa.
Entretanto, já as equipas de limpeza da Câmara lhes tinham seguido no encalço
para lavarem as ruas enlameadas de cerveja e recolherem as centenas de latas
que ficaram pelo chão.
Posso, de facto, ser apelidada de
velha antiquada, mas nunca quando andei na Faculdade assisti a nada parecido
sequer com desmandos destes. Praxes nesse tempo havia-as quando os agentes da
PIDE iam “assistir” às aulas de Linguística e de Literatura para espiarem falas
e comportamentos de alunos e de professores e depois prendiam ou torturavam uns
tantos…
Mas também não me lembro de
qualquer das minhas filhas – e essas, felizmente, nascidas já depois de Abril –
se submeterem às ordens esquizofrénicas de nenhum colega mais velho para depois
ganharem o estatuto de esquizofrenia necessário para fazerem submeter outros
mais jovens.
Por outro lado, também me farto
de dizer que, se os meninos e meninas se “submetem” a estas “cenas” é só porque
querem e acham giro. E não me venham com a treta da integração e de virem a ser postos de parte se não as cumprirem.
E, enquanto tudo isto foi
acontecendo em onda crescente, toda a gente, pais, professores, responsáveis
governamentais, sorria com uma bonomia amarela que talvez mascarasse, em
muitos, o medo, o acanhamento de mostrar uma posição contrária. Tão giro! Os
meninos a brincarem às seviciazinhas para mostrarem que eram… universitários!
Muito degradante!
Mas calo-me já! E deixo aqui o
melhor texto dos que tenho lido sobre este assunto da estupidez das “praxes”!
O País a nu, como no Meco.
Amanhã, os jovens corvos voltarão
às ruas. Não se escondem, o fato é comum para todos, preto e sobre ele uma capa
pesada, faça sol ou frio. Aqueles fato e capa não escondem, expõem a aceitação
da mais bizarra das afirmações: somos manada. Num jovem não seria de esperar
rebeldia e inquietude? Ora, ora, talvez agora o padrão seja outro, ser rancho,
ser grupo. E de grupo sem mérito nem voo. Ali, naquele país inculto e pobre,
anunciar pelo fato e pela batina uma conquista, mesmo patética, já é conquista:
olhem, sou estudante universitário! Fica com a taça, jovem corvo. Nunca saberás
que o mérito seria teres participado em debates e ganho, ou perdido, mas
participado; seria teres gozado o prazer de aprender, de duvidar, de
perseguires, mesmo erradamente, a luz. Mas esse não és tu. Tu, goza os teus
três, quatro anos de fato de luto - o único diploma que te distinguirá a vida
inteira, três, quatro anos a andar pelas ruas a proclamar nada. Entretanto,
sobe um patamar e praxa. Isto é, leva a tua ambição ao nível dos fundilhos do
teu traje. No começo, obedece e humilha-te. Serás premiado, depois, com mandar
e humilhar. Fica-te por aí, rasteiro. De grande, só a colher de pau. Fica-te
por aí, és o País. Sem saberes que um só dos teus podia redimir a todos. Um só
estudante, bela palavra, no pátio de uma universidade, bela palavra, dizendo as
mais certas das palavras para um jovem: não vou por aí.
Ferreira Fernandes, DN,
25 de Janeiro de 2014