sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O mundo é de quem não sente






«O mundo é de quem não sente. A condição especial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade. A qualidade principal na prática da vida é aquela qualidade que conduz à acção, isto é, a vontade. Ora há duas coisas que estorvam a acção – a sensibilidade e o pensamento analítico, que não é, afinal, mais que o pensamento com sensibilidade. Toda a acção é, por sua natureza, a projecção da personalidade sobre o mundo externo, e como o mundo externo é em grande e principal parte composto por entes humanos, segue que essa projecção da personalidade é essencialmente o atravessarmo-nos no caminho alheio, o estorvar, ferir e esmagar os outros, conforme o nosso modo de agir.

Para agir é, pois, preciso que não figuremos com facilidade as personalidades alheias, as suas dores e alegrias. Quem simpatiza pára. O homem de acção considera o mundo externo como composto exclusivamente de matéria inerte – ou inerte em si mesma, como uma pedra sobre que passamos ou que afasta do caminho; inerte como um ente humano que, porque não lhe pôde resistir, tanto faz que fosse homem como pedra, pois, como à pedra, ou se afastou ou se passou por cima.

O exemplo máximo do homem prático, porque reúne a extrema concentração de acção com a sua extrema importância, é a do estratégico. Toda a vida é guerra, e a batalha é, pois, a síntese da vida. Ora o estratégico é um homem que joga com as vidas como o jogador de xadrez com peças do jogo. Que seria do estratégico se pensasse que cada lance do seu jogo põe noite em mil lares e mágoa em três mil corações? (...)

O patrão Vasques fez hoje um negócio em que arruinou um indivíduo doente e família. Enquanto fez o negócio esqueceu por completo que esse indivíduo existia, excepto como parte contrária comercial. Feito o negócio, veio-lhe a sensibilidade. Só depois, é claro, pois, se viesse antes, o negócio nunca se faria. «Tenho pena do tipo», disse-me ele. «Vai ficar na miséria.» Depois, acendendo o charuto, acrescentou: «Em todo o caso, se ele precisar qualquer coisa de mim» - entendendo-se qualquer esmola - «eu não esqueço que lhe devo um bom negócio e umas dezenas de contos.» (...)

Manda quem não sente. Vence quem pensa só o que precisa para vencer. O resto, que é a vaga humanidade geral, amorfa, sensível, imaginativa e frágil, é não mais que o pano de fundo contra o qual se destacam estas figuras da cena até que a peça de fantoches acabe, o fundo-chato de quadrados sobre o qual se erguem as peças de xadrez até que as guarde o Grande Jogador que, iludindo a reportagem com uma dupla personalidade, joga, entretendo-se, sempre contra si mesmo.»

“O Livro do Desassossego”
Bernardo Soares

5 comentários:

  1. Um desassossego, sem dúvida, a roer os ossos, a alma e os bolsos dos portugueses, a toda a hora.

    Bernardo Soares a falar do presente na sua voz de passado. Não se aprende nada! Somos sempre iguais.

    Um beijo

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  2. Se conseguíssemos exportar os políticos que nos têm (des)governado, para países ricos como a Alemanha ou França, talvez não fosse um mau negócio...

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  3. Oi, Carol! Preciosa descrição essa! Há homens que se acham tão poderosos que esmagam sentimentos alheios em defesa do poder, do status, de ser o todo poderoso. Um dia a roleta da vida, muda! Dai, então...
    Abraço, Célia.

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  4. Querida Carol
    Já não há mais palavras para tanta insensibilidade, tanto cortar por baixo, pelas raízes...o que irá restar depois desta tempestade?!:-((

    Abraço

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