sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Almeida Garrett



Faz hoje, dia 4 de Fevereiro, 212 anos que, no Porto, nasceu o escritor, poeta, dramaturgo, ministro e Par do reino,  o liberal visconde de Almeida Garrett que,  juntamente com Alexandre Herculano, foi fundador do movimento romântico na literatura em Portugal.

Em jeito de homenagem, vou transcrever um trecho do seu lindíssimo romance "Viagens na Minha Terra", roteiro de paisagens e de conhecimentos filosóficos e literários na viagem por barco do cais do sodré até ao encantador Vale de Santarém.

Lindíssimo romance chamo-lhe eu agora, depois de o ler encantada, sendo já  adulta e professora; que quando me vi obrigada a  lê-lo no antigo 7º ano do Liceu, achei a maior "seca" e, antes do fim do 1º capítulo, desisti da leitura tendo-me limitado a deitar uma vista de olhos a um qualquer resumo que me preparasse para o exame... é que eu tinha mais que fazer: muitas festas, muitos bailes, muitos flirts...


"O Vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada grandioso nem sublime, mas há uma como simetria de cores, de sons, de disposição em tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor e benevolência. As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem senão fugir para longe.

Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro homem habitou com a sua inocência e com a virgindade do seu coração.

À esquerda do vale, e abrigado do Norte pela montanha que ali se corta quase a pique, está um maciço de verdura do mais belo viço e variedade. A faia, o freixo, o álamo entrelaçam os ramos amigos; a madressilva, a mosqueta penduram de um a outro suas grinaldas e festões; a congossa, os fetos, a malva-rosa do valado vestem e alcatifam o chão. Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre um claro das árvores a janela meio aberta de uma habitação antiga mas não delapidada — com certo ar de conforto grosseiro, e carregada na cor pelo tempo e pelos vendavais do sul a que está exposta. A janela é larga e baixa; parece mais ornada e também mais antiga que o resto do edifício que todavia mal se vê...

Interessou-me aquela janela. Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali? Parei e pus-me a namorar a janela. Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço. Pareceu-me entrever uma cortina branca... e um vulto por detrás... Imaginação decerto! Se o vulto fosse feminino!... era completo o romance.

Como há-de ser belo ver pôr o Sol daquela janela!...
E ouvir cantar os rouxinóis!...
E ver raiar uma alvorada de Maio!...
Se haverá ali quem a aproveite, a deliciosa janela?... quem aprecie e saiba gozar todo o prazer tranquilo, todos os santos gozos de alma que parece que lhe andam esvoaçando em torno?

Se for homem, é poeta; se é mulher, está namorada.
São os dois entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher namorada: vêem, sentem, pensam, falam como a outra gente não vê, não sente, não pensa nem fala.

Na maior paixão, no mais acrisolado afecto do homem que não é poeta, entra sempre o seu tanto da vil prosa humana: é liga sem que se não lavra o mais fino de seu ouro. A mulher não; a mulher apaixonada deveras sublima-se, idealiza-se logo, toda ela é poesia; e não há dor física, interesse material, nem deleites sensuais que a façam descer ao positivo da existência prosaica.

Estava eu nestas meditações, começou um rouxinol a mais linda e desgarrada cantiga que há muito tempo me lembra de ouvir.

Era ao pé da dita janela!

E respondeu-lhe logo outro do lado oposto; e travou-se entre ambos um desafio tão regular, em estrofes alternadas tão bem medidas, tão acentuadas e perfeitas, que eu fiquei todo dentro do meu romance, esqueci-me de tudo mais.

Lembrou-me o rouxinol de Bernardim Ribeiro, o que se deixou cair na água de cansado.

O arvoredo, a janela, os rouxinóis... àquela hora, o fim da tarde... que faltava para completar o romance? Um vulto feminino que viesse sentar-se àquele balcão — vestido de branco — oh! branco por força... a frente descaída sobre a mão esquerda, o braço direito pendente, os olhos alçados ao céu... De que cor os olhos? Não sei, que importa! é amiudar muito de mais a pintura, que deve ser a grandes e largos traços para ser romântica, vaporosa, desenhar-se no vago da idealidade poética...

— «Os olhos, os olhos...» disse eu pensando já alto, e todo no meu êxtase, «os olhos... pretos.»

— «Pois eram verdes!»

— «Verdes os olhos... dela, do vulto da janela?»

— «Verdes como duas esmeraldas orientais, transparentes, brilhantes, sem preço.»

— «Quê! pois realmente?... É gracejo isso, ou realmente há ali uma mulher, bonita, e?...»

— «Ali não há ninguém — ninguém que se nomeie hoje, mas houve... oh! houve um anjo, um anjo que deve estar no céu.»

— «Bem dizia eu que aquela janela...»

— «É a janela dos rouxinóis.»

— «Que lá estão a cantar.»

— «Estão, esses lá estão ainda como há dez anos… os mesmos ou outros, mas a menina dos rouxinóis foi-se e não voltou.»

— «A menina dos rouxinóis! que história é essa? Pois deveras tem uma história aquela janela?» "


Pois tem! Mas para saberem qual a história, deverão, e eu aconselho vivamente, proceder à leitura da obra completa. foi o 1º romance de viagens escrito em português  e é uma ternura!

6 comentários:

  1. lol Também foi um seca quando da leitura obrigatória...

    Não é dos meus preferidos. Mas tem qualidade. Muita mais do que muitos que agora se publicam:)

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  2. Dessa obra recordo uma pergunta, por sinal bastante actual, "quantos pobres são necessários para fazer um rico?" e esses olhos (da cor dos meus) da Joaninha.

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  3. Querida Carol, estes livros nunca deviam ser de leitura obrigatória, pois quando nos são impostos, não temos maturidade para os apreciar devidamente. Mais tarde, tornam-se um deleite, para a alma.
    Beijinhos e bom fim-de-semana.

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  4. Subscrevo o que dizes!
    Só quando o reli para o dar aos alunos como "leitura obrigatória" no então 6º ou 7º ano é que descobri a modernidade espantosa desta obra!
    Não sei se consegui passar a mensagem aos alunos que, como nós, andavam noutra... :-))

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  5. Bela lição de história.
    Eu também quase que li aqueles célebres escritores que se tornavam quase obrigatórios.
    Eça, Guerra Junqueiro,Almeida Garret, Alexandre Herculano, Júlio Dinis, Fialho de Almeida e, pasme-se, até Albino Forjaz de Sampaio.
    Hoje, não sei se ainda se lê Luis de Camões.
    Um beijo e, bom fim de semana.

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  6. O menino Ruizinho saiu-me cá um vaidoso! Olhos verdes como os da Joaninha, heim?

    A Manuela tem toda a razão: não deviam ser de leitura obrigatória estas obras. Mas se não for assim nunca se chegam a ler, que é o que acontece agora. É um parodoxo, não é?

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