Não é novidade para ninguém, mas vejam só a actualidade dos escritos de Mestre Gil Vicente! Um extracto do Auto da Lusitânia escrito em 1531 e representado na corte de D. João III no ano seguinte.
Os diabos Belzebu e Dinato encontram-se em cena. Dinato escreve o que lhe é mandado por Belzebu.
Entra Todo-o-Mundo, homem como rico mercador e faz que anda buscando alguma coisa que se perdeu. E logo após ele um homem vestido como pobre: este se chama Ninguém.
Ninguém: Que andas tu aí buscando?
Todo-o-Mundo: Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.
Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?
Todo-o-Mundo: Eu hei nome Todo-o-Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.
Ninguém: Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.
Belzebu: Esta é boa experiência
Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que escreverei, companheiro?
Belzebu: Que Ninguém busca consciência.
e Todo-o-Mundo dinheiro.
Ninguém: E agora que buscas lá?
Todo-o-Mundo: Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.
Belzebu: Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra Todo-o-Mundo
e Ninguém busca virtude.
Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse?
Todo-o-Mundo: Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém: E eu quem me repreendesse
em cada cousa que errasse.
Belzebu: Escreve mais.
Dinato: Que tens sabido?
Belzebu: Que quer em extremo grado
Todo-o-Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.
Ninguém: Buscas mais, amigo meu?
Todo-o-Mundo: Busco a vida a quem ma dê.
Ninguém: A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
Belzebu: Escreve lá outra sorte.
Dinato: Que sorte?
Belzebu: Muito garrida:
Todo-o-Mundo busca a vida
e Ninguém conhece a morte.
Todo-o-Mundo: E mais queria o paraíso,
sem mo Ninguém estorvar.
Ninguém: E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
Belzebu: Escreve com muito aviso.
Dinato: Que escreverei?
Belzebu: Escreve
que Todo-o-Mundo quer paraíso
e Ninguém paga o que deve.
Todo-o-Mundo: Folgo muito d'enganar,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém: Eu sempre verdade digo
sem nunca me desviar.
Belzebu: Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.
Dinato: Quê?
Belzebu: Que Todo-o-Mundo é mentiroso,
E Ninguém diz a verdade.
Ninguém: Que mais buscas?
Todo-o-Mundo: Lisonjear.
Ninguém: Eu sou todo desengano.
Belzebu: Escreve, ande lá, mano.
Dinato: Que me mandas assentar?
Belzebu: Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo-o-Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.