«A Revolução Russa de outubro 1917, cujo centenário se comemora em novembro
no nosso calendário, foi iniciada por um pequeno grupo de revolucionários
profissionais que queriam transformar o mundo e criar a primeira sociedade
comunista. A tomada do poder em Sampetersburgo, no entanto, desencadeou uma
violenta guerra civil na Rússia e deu origem a um regime totalitário que para
os artistas da época implicou um retrocesso criativo, levando ao triunfo de
ideias conservadoras capazes de envergonhar a pior censura do tempo dos czares.
Quando estalou a revolução, a Rússia era ainda um país essencialmente
rural, cujas riquezas estavam nas mãos de uma classe aristocrática separada do
povo e habituada aos tempos da servidão dos camponeses. (…)
O descontentamento popular crescera na Rússia nos anos anteriores à
revolução, pelo menos desde 1905, quando o regime czarista preferiu
estupidamente reprimir uma manifestação contra o deficiente abastecimento
alimentar. A queda do czar Nicolau II, em fevereiro de 1917, foi a consequência
de uma contestação popular espontânea semelhante à de 1905, mas desta vez o
protesto foi acompanhado do colapso do exército e, sobretudo, do desprestígio
do monarca, uma personalidade fraca, incapaz de impedir a acumulação de
rancores exacerbados pela guerra [de 1914], que já levava três anos.
O czar abdicou devido à pressão popular, ao elevado número de baixas
militares, mas também por causa da fome, da incompetência e estupidez das
elites, da repressão e da doença, da raiva acumulada pelo atraso crónico do
país. Ao contrário do que acontecera no resto da Europa às revoluções liberais
de meados do século XIX, a república burguesa foi uma mera transição que durou
escassos meses, suplantada pela radicalização bolchevique de outubro (novembro
no nosso calendário) cujo poder se baseou em assembleias populares, os
sovietes, que rapidamente eliminaram o embrião de democracia parlamentar russa.
Sem massivo apoio popular, pelo menos do povo urbano, a revolução soviética
jamais teria triunfado, sobretudo na guerra civil, que foi um extenso e cruel
episódio de combates sem quartel e de intervenções militares externas. E esse
apoio das massas foi acompanhado pelo idealismo de muitos artistas,
nomeadamente escritores e poetas que aderiram depressa às promessas
revolucionárias de uma literatura inovadora capaz de elevar os leitores e de
transmitir ao mundo as novas ideias. Essa esperança de liberdade duraria pouco.
Na realidade, os intelectuais e escritores da revolução foram rapidamente
devorados pela violência e pelo instinto totalitário do novo regime. Pode até
argumentar-se que uma das literaturas mais vibrantes do mundo foi assassinada,
nos anos 30, pela obsessão estalinista de controlar todos os aspetos da vida
dos cidadãos, usando os métodos do medo e da violência para silenciar qualquer
atrevimento de individualismo.
Para sobreviver na literatura soviética, não era suficiente ser bom
revolucionário, era preciso evitar erros políticos. Muitos escritores foram
vítimas da sua inabilidade, por terem escolhido mal os protetores ou por terem
escrito coisas comprometedoras em períodos em que se julgavam seguros. (…) após
a abertura dos arquivos da polícia política (NKVD), os historiadores russos
apuraram que dois mil intelectuais, académicos e artistas soviéticos foram
presos durante as purgas do final dos anos 30 e que terão morrido nas prisões e
nos campos de concentração mais de 1500, entre eles muitos escritores.»
(Parte do artigo “A Revolução que também devorou os seus
escritores”, Luís Naves, in Ler, Verão 2017)
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(Ilustração de Pedro Vieira) |