Aqui o dono-da-casa (detesto o apodo de “o meu marido”…) faz parte da
direção de um Lar de Idosos. É uma IPSS mas foi construída de raiz. É amplo,
luminoso, com jardim à volta, com todas as comodidades exigidas por lei e,
ainda por cima, dentro da povoação, perto do centro de saúde, da escola, do
clube de futebol, das casas – tudo ali à volta.
Calhou passar por lá hoje e ver dois ou três utilizadores do lar a virem
instalar-se na varanda superior para desfrutarem do belíssimo dia de Sol. E,
aí, veio-me uma vez mais à cabeça a ideia triste, confusa e sem solução de que
os lares de idosos, mesmo com todo conforto e bem-estar que oferecem (para
muitos dos que lá moram será por certo muito mais do que tiveram ao longo das
suas vidas) são, de facto, a última morada antes da última das últimas… Pensei
na angústia que aquelas pessoas devem ter sentido ao trocar as suas casas,
mesmo que sem grandes condições, por aquele espaço alegre e amplo onde tudo
lhes aparece feito – mas que, de facto, não é o seu.
Lembrei-me da minha avó – aquela que me criou até aos dez anos e que viveu
comigo os seus últimos anos de vida. De um dia para o outro, perdeu a visão –
já quase tinha perdido a audição – e, com o passar dos dias, começou a perder a
noção do espaço e do tempo.
Nessa época, estava eu pelos trinta e poucos anos, duas filhas pequenas, a
direção de uma escola enorme e de referência, muito pouco tempo em casa e o que
havia era para realizar um sem número de diferentes tarefas. Não havia
condições para lidar com uma pessoa de noventa anos a deambular pela casa às
apalpadelas e a confundir os dias com as noites.
Início dos anos oitenta. Lares em Leiria? Onde? Lisboeta euzinha… toca de
ir procurar coisa agradável lá para os meus sítios. Algés, sim. Perto de onde
ela tinha vivido grande parte da sua vida em Portugal. Uma moradia, ali perto
do Tejo. Quartinho de duas camas. Tudo bem cuidado. Sim. Pagava-se bem, mas que
fazer?
Um baque no coração quando a vi sair de minha casa ao colo do meu marido…
A primeira vez que a visitei – a minha mãe é que ia lá mais amiúde – estava
ali na sala, num sofá, no meio de outras velhas, tão velhinha, tão enrugada,
tão pequenina (tinham-lhe cortado a trancinha que sempre lhe conhecera
encarrapitada…) – ela que me criara com tanta determinação; ela que ainda me
ajudara a criar a minha filha mais velha… Não me conheceu. Recusei,
cobardemente, outras mais visitas.
A última vez que a vi viva, já não se levantava. E repetia, quase
insanamente, «Mamã… Mamã… Mamã…»
Nem quero pensar.
Faria amanhã não sei quantos anos. Tenho ali um registo que diz que nasceu
em 1895, mas os seus documentos verdadeiros perderam-se na Guerra Civil
espanhola e, ela própria não se lembrava do ano do seu nascimento. Só do dia.
29 de Setembro.
|
(Do Jornal de Leiria) |