Só que ainda não tive tempo de falar aqui do Prémio Camões deste ano (29ª
edição) atribuído, no passado dia 8, ao poeta Manuel Alegre. E muito
justamente.
Ao lado de poetas e escritores portugueses de alto nível como Miguel Torga,
Vergílio Ferreira, Saramago, Eduardo Lourenço, Agustina, Lobo Antunes, Sophia e
de muitos outros grandes cultores da Língua Portuguesa do Brasil, de
Moçambique, de Cabo-Verde, Manuel Alegre entra para esta galeria aos 81 anos de
idade e mais de 50 de escrita publicada.
O que mais me encanta nesta atribuição é o cruzamento constante da sua
poesia – tantas vezes épica – com a do nosso poeta maior. Como Camões, também
Alegre foi um poeta exilado.
Lusíada Exilado
(…)
Há nevoeiro em mim. Dentro de abril dezembro.
Quem nunca fui é um grito na memória.
E há um naufrágio em mim se de quem fui me lembro
há uma história por contar na minha história.
Trago no rosto a marca do chicote.
Cicatrizes as minha condecorações.
Nas minhas mãos é que é verdade D. Quixote
trago na boca um verso de Camões.
Sou este camponês que foi ao mar
lavrou as ondas e mondou a espuma
e andou achando como a vindimar
terra plantada sobre o vento e a bruma.
Sou este marinheiro que ficou em terra
lavrando a mágoa como se lavrar
não fosse mais do que a perdida guerra
entre o não ser na terra e o ser no mar.
(…)
Eu que fundei Lisboa e ando a perdê-la em cada
viagem. (Pátria-Penélope bordando à espera.)
Eu que já fui Ulisses. (Ai do lusíada:
roubaram-lhe Lisboa e a primavera.)
Eu que trago no corpo a marca do chicote
eu que trago na boca um verso de Camões
eu é que sou capaz de ser o D. Quixote
que nunca mais confunda moinhos e ladrões.
Eu que fiz tudo e nunca tive nada
eu que trago nas mãos o meu país
eu que sou esta árvore arrancada
este lusíada sem pátria em Paris.
Eu que não tenho o mar nem Portugal.
(E foi meu sangue o vinho meu suor o pão.)
Eu que só tenho as lágrimas de sal
que me deixou el-rei Sebastião.
Lusíada exilado. (E em Portugal: muralhas.)
Se eu agora morresse sabia por quê.
Venham tormentas e punhais. Quero batalhas.
Eu que sou Portugal quero viver de pé.
In 30 Anos de Poesia, 1996
E sobre Luís de Camões,
escreveu assim:
Tinha uma flauta.
Não tinha mais nada mas tinha uma flauta
tinha um órgão no sangue uma fonte de música
tinha uma flauta.
Os outros armavam-se mas ele não:
tinha uma flauta.
Os outros jogavam perdiam ganhavam
tinham Madrid e tinham Lisboa
tinham escravos na Índia mas ele não:
tinha uma flauta.
Tinham navios tinham soldados
tinham palácios e tinham forcas
tinham igrejas e tribunais
mas ele não:
tinha uma flauta.
Só ele Príncipe.
(…)
De fora vieram reis
vieram armas de fora
os príncipes entregaram armas
ficou sem armas o povo.
As armas de fora venceram
todas as armas de dentro.
Só não venceram o que não tinha armas:
tinha uma flauta.
E as vozes de fora mandaram
calar as vozes de dentro.
Só não puderam calar aquela flauta.
Vieram juízes e cadeias.
Mas a flauta cantava.
(…)
E quando tudo se perdeu
ficou a arma do que não tinha armas:
tinha uma flauta.
Ficou uma flauta que cantava.
E era uma Pátria.
In “A Praça da Canção” , 1967
"Estendida nesta linha de influências e modelos, a poesia de Manuel
Alegre faz ressurgir a voz de Camões numa espécie de canto geral da condição
lusíada. Épica naquilo que tem de exaltar, lírica na voz sofrida daquele que
busca e não encontra o sentido dessa condição; eis uma poesia que pesquisa a
raiz ancestral do ser, a origem da grandeza ética." (João de Melo, 1989)