Fiquei a saber que passaram, no último domingo, dia 12, 150 anos sobre o
nascimento do escritor Raul Brandão, autor de romances como «Húmus», «As Ilhas
Encantadas», «Os Pescadores», «Os Pobres», «A Morte de um Palhaço», para além
dos muitos poemas, dos livros de Memórias e do maravilhoso livro «Portugal
Pequenino» que escreveu com sua mulher, Maria Angelina.
Nascido no Porto, em 12 de março de 1867, foi o filho de pescadores que
encontrou na carreira militar a saída para uma outra vida. O episódio mais
marcante da sua existência, confessaria o próprio no primeiro volume de
Memórias, seria um desfile de tropas em que viu pela primeira vez Maria
Angelina, filha de um industrial de Guimarães onde ele tinha assentado praça –
no que é hoje o Paço dos Duques de Bragança. Foi amor à primeira vista.
Aconteceu em 1896, quando era alferes, poucos dias depois de chegar à cidade.
Casaram um ano mais tarde.
Em 1898, comprou uma casa com uma quinta, a Casa do Alto, na aldeia de
Nespereira, perto de Guimarães, que renovou e para onde foi morar quando ficou
pronta em 1912 com a mulher. Daquelas paredes de granito nasceram alguns dos
mais importantes trechos da literatura portuguesa que o início do século XX
produziu. Aquela casa é bem capaz de explicar como Raul Brandão permaneceu numa
relativa sombra da memória literária portuguesa do início do século XX. É certo
que o modernismo, e a revista Orpheu, catapultaram Fernando Pessoa, Almada
Negreiros e Mário de Sá-Carneiro para a posição de vanguarda da cultura
portuguesa.
Raul Brandão, porém, misturou o expressionismo com o lirismo, a
contemplação com uma mordaz crítica social. É o grande literato da época que
preferiu o refúgio minhoto aos holofotes da cidade. E nada simboliza tanto a
sua necessidade de recato como a construção da Casa do Alto.
Esta casa viveu grandes aventuras. Brandão viu-a como o seu refúgio de escrita. Os verões passava-os na Nespereira, nos invernos rumava à capital, onde se encontrava com editores e escritores, poetas e jornalistas. Mas nunca foi um deles, era o estranho no meio da urbanidade. Preferia convocar os amigos para a Casa do Alto – e eles acorriam, de comboio, mais para noites de tertúlia do que de festa.
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(Raul Brandão e os "searistas") |
Como nunca tiveram filhos adotaram de alguma forma a sobrinha mais nova,
avó do atual morador da Casa do Alto, o arquiteto Manuel Vilhena Roque. E foi
essa mulher, que viveu até aos 110 anos e só morreu em 2016, que lhe contou de
como os escritores chegavam no comboio da tarde e suavam as estopinhas para
subir a ladeira. De como Brandão se ocupava a dedilhar prosa mas às vezes
largava porta fora e se punha a fazer caricaturas do povo que trabalhava a
terra. De como gostava de subir o monte para se sentar numa fraga horizontal
que era meio pedra e meio trono – e ali permanecia numa quietude profunda, a
ouvir o ruído que esconde o silêncio.
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(Raul Brandão pintor) |
Raul Brandão morreu em 1930, Maria Angelina em meados dos anos setenta, e a
maior parte do espólio do escritor foi entregue à Sociedade Martins Sarmento de
Guimarães.
No início dos anos oitenta, a família entregou a casa à Secretaria de
Estado da Cultura com o objetivo de que o estado a transformasse numa
casa-museu o que nunca aconteceu. E, no final dos anos noventa, os telhados
tinham ruído, as janelas estavam partidas, o recheio vandalizado. Foi então que
o sobrinho neto do escritor resolveu renovar a casa e transformá-la na sua
própria habitação. Hoje a Casa do Alto tem salas modernas e quartos
confortáveis, aproveitamento de calor e aquecimento central, mas também uma
biblioteca recheada de primeiras edições, desenhos originais, dedicatórias de
amor de Raul a Maria Angelina.
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(A Casa do Alto atual e a do início do séc. XX) |