Em jeito de homenagem.
«...As minhas dores no estômago e nos intestinos continuam
sem descanso e os médicos não descobrem o que tenho apesar de todo o seu saber,
simpatia e generosidade. É preferível morrer. É neste estado que vos escrevo
embora a minha letra, que aqui vêdes, não dê sinal de tantos males e de tão
profundo abatimento. Fui sempre pessoa de grande coragem e espero conservá-la
até ao último momento.
A todos os que me estimaram e, no extremo, me amaram, um
longo adeus com os olhos tristes. Muito em particular para os meus mais
íntimos. Deixo, neste vale, a minha mulher Natália, dois filhos (uma filha e um
filho) e cinco netos (duas netas do filho, e uma neta e dois netos da filha).
Todos me estimaram, e até me amaram muito, cada um com a sua capacidade de
expressão.
E é tudo.
Chamo-me Rómulo e nasci no dia 24 de Novembro de 1906 com
sete meses de gestação. Faleci em 19 de Fevereiro de 1997.
Adeus.
(Rómulo de Carvalho em "MEMÓRIAS" - uma edição da
Fundação Gulbenkian em 2010)
(retirado da página do facebook de sua filha, a escritora Cristina Carvalho)
A morte do poeta António Gedeão
deu-se anos antes como muito bem explica o escritor Urbano Tavares Rodrigues.
Foi em 1984 com o lançamento de “Poemas Póstumos. O poeta morre, tal como
nasceu, pelas mãos do seu criador— Rómulo de Carvalho.
"Em «Poemas Póstumos»,
Gedeão continua a dar-nos poemas de vibração colectiva, mas as suas tonalidades
tornam-se com frequência mais escuras e o tecido lírico é invadido por um certo
cepticismo. Lembro o triste, terrível «Poema do Amor Fóssil» (Poemas Póstumos),
com o seu advertido receio de insensibilidade do mundo cibernético. Um dos
poemas capitais desta segunda fase de António Gedeão é o doloroso «Poema sem
Esperança», onde o sujeito poético conta ter simulado por vezes, como um
médico, como um soldado, mais esperança do que aquela que sentia.
(…)
Ao optimismo do século XIX, à sua
crença ilimitada no progresso, sucede neste final do século XX, uma habituação
ao pesadelo.
(…)
Hoje, perante as desigualdades, o
desemprego, as monstruosidades sociais e intercontinentais que estão nascendo
dos modelos da globalização, sob a tutela de um pensamento único - o do
neoliberalismo venerador do dinheiro acima de tudo, sentimos a falta de mais
vozes como a de António Gedeão, que se calou após os seus Poemas
Póstumos»."
(TAVARES RODRIGUES, Urbano,
"Decifrados do mundo, Alquimista do sonho", in Jornal de Letras,
Lisboa, 26 de Fevereiro, 1997)
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Poema do amor fóssil
Quem de nós falará aos homens que
hão-de vir
quando o grande clarão encher de
luz
e pasmo as nossas bocas?
E como?
Que língua entenderão eles?
Que símbolos, que sinais, que
apagados murmúrios,
lhes falarão de nós,
desta fluida e versátil multidão,
destes seres que aparentam rosto
humano
e como tal comovem,
mas que olhados do alto são lepra
do planeta.
Que significará sofrer, amar,
lutar,
quando as nossas misérias e
tormentos
não forem mais do que pegadas
fósseis?
Que palavras há-de o poeta
reservar
para o coração de plástico dos
homens que hão-de vir?
Que santo e senha entenderão
Que de nós restará neles?
Que parecenças terão com estes
hominídeos
que amaram a Natureza porque lhes
era hostil
e suportaram o próximo porque não
eram livres?
Que verbo deverá ficar gravado na
pedra que o vento não corroa,
que lhes fale dos humilhados e
dos ofendidos,
dos sonhadores e dos impotentes,
dos ansiosos, dos bêbados e dos
ladrões,
desta ridícula, miserável e
corrupta humanidade
que instala os arraiais da morte
alegremente
num campo que foi verde e que não
volta a sê-lo?
Amor?
Como será amor em língua
cibernética?
(António Gedeão, in Poemas Póstumos)