(Lagoa dos Teixoeiros ou da Mata; Tocha; Cantanhede onde Carlos de Oliveira viveu) |
Recordo sempre «Uma Abelha na
Chuva» (19 53) como um dos melhores romances que li. Foi de tal modo que, no
fim de uma daquelas excelentes formações que tive em Lisboa sobre essa obra,
ainda no âmbito da Reforma Viga Simão, em finais de 70, fui à (saudosa) Sá da
Costa, comprei o livro e li-o quase todo de enfiada na viagem de comboio para
Leiria.
Há dias li não sei onde que a
obra-prima de Carlos de Oliveira em prosa não fora «Uma Abelha na Chuva», nem
«Casa na Duna» (1943), mas «Finisterra» (1978). E aí me mandei eu para a
Biblioteca Municipal para requisitar o dito romance.
Comecei a lê-lo assim que cheguei
a casa e garanto-vos que na página trinta e tal ainda não tinha percebido nada.
Só que não era capaz de parar à espera que, ao virar de página ou de linha, me
aparecesse uma ponta da meada para começar a (des)enrolar o novelo. Nada!
A voracidade com que li «Uma
Abelha na Chuva» foi a mesma com que li «Finisterra». Mas enquanto da primeira
vez eu avançava célere para conhecer o enredo, agora, lia para entender a
construção da narrativa. Copiei frases, palavras-chave, ideias e quando ao fim
da tarde do dia seguinte cheguei ao fim das suas 180 páginas, voltei ao
princípio – como tantas vezes me acontece no final da leitura de tantas obras –
para completar as notas que avulsamente fui tirando e, saltitando atrás e à
frente, reli o livro todo.
Cola-se-nos como o líquido
pastoso da gisandra – planta ou mineral? não se sabe – que perpassa toda a obra
se cola à casa e à narrativa, enfim.. É que toda aquela arquitetura do romance que
se aprendia na faculdade sobre as personagens, o narrador, o espaço, o tempo e a
ação cai por terra nesta obra. Trata-se da verdadeira desconstrução do romance
numa perpetiva neo-realista da fase tardia do Modernismo em Portugal.
«Finisterra» - fim do mundo – tem
como subtítulo «Paisagem e Povoamento» e é toda ela mais descrição da paisagem
e da forma como foi povoada pela família em questão. E é dentro dessa descrição
algo caótica e enigmática que nos são contados em constantes e nublados avanços
e recuos os contornos da família que povoou a paisagem e construiu a casa. [“A
casa, vista de fora, impressiona. Fortaleza, resistindo aos impulsos da névoa.
Fantástica, também: o halo, o contorno fosforescente…”] A casa está em ruínas
como a família – ou o que dela resta e… (não vou dizer como termina…)
O narrador (um ou vários, vá-se
lá saber…) tanto fala como narrador (em 3ª pessoa) como personagem (em 1ª
pessoa) e isso acontece muitas vezes quase dentro da mesma frase.
As personagens não têm nome,
apenas lhes é referido o laço familiar. Há a criança “sentada no osso de
baleia” no jardim a desenhar, quase sempre febril, que alterna com o homem
adulto (a mesma personagem diga-se) “a vaguear toda a noite” pela casa e “vai a
caminho da infância, duplica a própria imagem regressivamente”. Há o pai, a
mãe, o tio – a memória do avô povoador, o amigo da família e o executor fiscal –
todos apresentados quase como silhuetas rodeadas de névoa e de uma reverberação
enigmática.
O leit motiv da narrativa – que é a obsessão de toda a família – é o registo da imagem: da casa, das dunas, da
lagoa, do jardim, quer pelo desenho (a criança), pela fotografia (o pai), pela
pirogravura em carneira (a mãe), pela topografia, a maquete (pelo homem adulto
– que é afinal a criança e muitas vezes o narrador.) Mas tudo desfocado,
moldado pelo orvalho, pela névoa do mar e das dunas, pelo vento, por um halo de
luz, pela penumbra, pelos jogos de sombras em labaredas, a madrugada e o
crepúsculo.
Tudo muito misterioso, muito
enigmático num desconcerto de tempo e de espaço, mas com uma linguagem poética
de índole romântica pelo assunto, mas modernista pela forma, num jogo de cores,
de luz e contraluz, de fluidez, de bruma e encantamento que fazem lembrar a
ambiência dos tempos de Merlin e das maléficas deusas de Avalon.
(Amanhecer na Lagoa dos Teixoeiros, Tocha) |
Poderia estar aqui a falar desta obra
por mais sei lá quantas páginas, mas não o farei sob pena de…
Quem gostar e se atrever, leia a
obra. É um espanto em termos de literatura e de língua. De Língua Portuguesa.