Tenho para mim, desde sempre, que
a simplicidade – assim como a humildade – é um estado que só alguns alcançam. Do
alto de toda a sua sabedoria, Da Vinci dizia que «a simplicidade é o último
grau da sofisticação».
Encantam-me pessoas como a
escritora espanhola Rosa Montero que afirma que «A escrita, para mim, não serve para demonstrar o que quer que seja, mas
sim para a prender. Se não acrescentar algo ao meu conhecimento é porque não
escrevi bem.»
Também Luísa Dacosta, escritora,
professora, pedagoga, que teve 20 valores no antigo Exame de Estado, exame que
tinha de se fazer no final do estágio para se poder entrar na carreira de professor
(o único exame que o ministro (C)rato ainda não fez renascer…) quando um
estagiário de grande nível tinha 16, 17 no máximo, dizia: «Tive crianças que passaram por dificuldades extraordinárias, mas a
determinada altura vi que era capaz de escrever para eles. Ajudaram-me a
escrever. Incluí no meu vocabulário algumas palavras criadas pelos alunos.»
A lembrá-la e a homenageá-la na
sua recente partida deste mundo, Guilherme de Oliveira Martins escreve: «Para si o diálogo com os alunos era
fundamental. Quantas vezes saía da sala de aula, dizia que era ela quem mais
tinha aprendido.»
(Salvas as devidas distâncias e
longe de tentar qualquer tipo de comparação com senhoras do nível destas que atrás referi, recordei
uma situação desconfortável por que passei há muitos, muitos anos, no início da
minha carreira: no primeiro ano em que fui orientadora de estágio para
professores, nos idos de 78/79, ganhei uma bolsa da Gulbenkian de um mês na
Universidade de Chichester, em Inglaterra. Éramos 20 portugueses entre orientadores de estágio
e estagiários recém-formados e uma dessas colegas perguntou-me se eu gostava de
ser orientadora; eu, que sempre gostei do fiz na escola, respondi que sim
especialmente por causa do que aprendia com as estagiárias. Grandes gargalhadas
deu a colega – que até era mais velha do que eu – dizendo, divertida:
«Aprendes? Mas tu é que tens de ensinar…»)
A simplicidade de uma pessoa como
era Luísa Dacosta está por de mais patente na espécie de texto autobiográfico
de despedida que o Expresso publicou no dia da sua passagem. Para quem ainda
não leu, fica aqui um “cheirinho” desse belo texto que poderá ser lido na íntegra aqui.
«Lamento sair desta vida bastante
desiludida. Por exemplo, em relação à alegria com que festejei o fim da II
Guerra, a pensar que nunca mais havia guerras, e que vinha aí a solidariedade,
a democracia e a liberdade para todos. Mas não. Estamos num mundo criminoso em
que 70 por cento da população mundial não tem acesso à água, à comida, à saúde,
à educação. Sobretudo, incomoda-me partir com a certeza de que a parte mais
esmagada deste mundo é a mulher. Isso dói-me. A pessoa sai daqui a pensar que
certas coisas pelas quais lutou já nunca mais aconteceriam, e afinal pioram.
Nunca pensei que as mulheres se fizessem a elas próprias bombas. É preciso um
desespero terrível e já não acreditar em mais nada, para se fazer uma coisa
dessas. Isto significa que criámos um mundo que é imoral. Há uns que julgam que
já viram tudo, que já sabem tudo, que já têm tudo, e há outros que andam a
esgravatar, a ver se encontram umas sementes na terra. É uma coisa atroz. Nunca
fui optimista, mas tão pessimista como agora, também não. (…)
Agora começo a ter a noção de que
possivelmente o tempo está a acabar. Preocupa-me, na medida em que às vezes me
perguntam se quero cair para o lado, porque ainda continuo a ir dar umas aulas,
como fui recentemente aos Açores, onde apanhei uma pneumonia. Eu respondo que é
exactamente isso que quero: cair para o lado. Há só uma coisa que me apavora no
fim: o tempo de desgaste que as pessoas às vezes têm numa cama. Ainda vivo
sozinha, ainda faço as minhas compras, ainda faço a minha comida. Faço uma vida
bastante normal. Não desejo a dependência. Custa-me mais aceitar a degradação
do que a morte. A dependência é uma coisa terrível. A minha mãe era uma pessoa
de grande vontade. Partiu as duas pernas, foi operada e nos últimos tempos
ficou acamada. Lembro-me que quando eu a lavava, ela chorava. Devia ser uma
coisa terrível. Para uma pessoa independente como eu, isso é uma humilhação que
me aterra. (…)
Não me vejo reformada. Fui dar
uma aula à Faculdade de Psicologia, em Lisboa, e disseram-me para voltar no
próximo ano. Eu respondi que, se estiver viva, lá estarei. Depois alguém me
disse que eles sabiam o que é que iam lá buscar, mas e eu? O que é que ia lá buscar?
Respondi que também sabia o que é que ia lá buscar. Vou buscar bafo humano, que
é a única forma de sobrevivermos.
Tive dias terríveis na minha
vida. Enterrei uma filha no dia de Natal. Não resistiu ao cancro a que eu
resisti. As coisas mais gratificantes que tive na vida vieram dos afectos. Por
exemplo, cartas que tive dos alunos. A afectividade toca-me bastante. A
primeira aula que dei a seguir a ter estado internada foi um dos momentos mais
emocionantes da minha vida.
A vida ensinou-me que não podemos
viver sozinhos. Ensinou-me que não podemos viver sem o bafo humano e que
devemos fazer tudo para lutar por isso.»