Nunca foi daquelas figuras da política que, à partida, me agradou. Não votei nele em 76 aquando da sua primeira eleição e, da segunda vez, foi uma antiga colega, mulher de um militar que o conhecia bem que me "convenceu" a votar nele. A criação do PRD, à saída de Belém, desiludiu-me de todo e, de então para cá, a figura do General desvaneceu-se-me completamente.
Daí que fosse surpreendida por esta homenagem repentina que nem entendi muito bem. Mais moderada do que penso que sou, fiquei, no entanto, um pouco chocada com o "verdete" que algumas pessoas da esquerda de que se pensam donos absolutos tentaram destilar sobre a dita homenagem chegando a afirmar que a ação do general, à época tenente-coronel, no chamado golpe do 25 de Novembro (de 1975) marcou o início do descalabro.
Não encontrei as palavras exatas nem o tempo necessário para, de alguma forma, aqui responder a esse tipo de provocação, mas que bom que há quem tenha as ditas palavras exatas para o fazer com a necessária elegância e subtileza, ainda por cima homem de esquerda. E é esse texto de Baptista-Bastos - uma vez mais (que não há de ser a última) - que deixo aqui como contestação de muitas opiniões, ou melhor, certezas absolutas que uma certa esquerda hermética e empedernida pretende sobrepor a tudo e a todos.
«Uma firmeza de carácter que
poderia ser entendida com juízos contraditórios, tanto mais que ele raramente
sorria. Conheci-o em 1977, durante o 11 de Junho, na Guarda. Fora enviado à
cidade alta, para relatar, em uma página do Diário Popular, o que se me afigurava
fastidiosamente desinteressante. Não o foi. E, em vez da página combinada, a
qualidade comovente dos acontecimentos impeliram-me a escrever um suplemento de
dezasseis. A acompanhar-me, Rocha Pato, correspondente do jornal em Coimbra,
estimado camarada e jornalista fora do comum. O homem aparentemente distante,
recém-eleito Presidente da República, foi à sala da imprensa. Quando lhe disse
o meu nome, ele respondeu: "Sei muito bem quem o senhor é." E
apertou-me a mão com firmeza e calor. António Ramalho Eanes. Ficámos amigos até
hoje. Com ele viajei por Portugal e ao estrangeiro. Aprendi que ele dispunha de
um sentido de ironia por vezes devastador, e que, apenas com uma frase era bem
capaz de definir um homem e o seu cunho. Em épocas menos airosas da minha vida,
havia sempre umas palavras, pelo telefone ou em carta. Certa vez, estava eu a
passar pelos atropelos de uma insídia, ele telefonou e disse-me: "Não se
esqueça de que só apedrejam as árvores que dão fruto." Não esqueci.
Um homem como este, que desperta
a estima em pessoas tão diferentes como Miguel Torga, Jorge de Sena, Vasco da
Gama Fernandes ou Manuel da Fonseca e Augusto Abelaira, terá de possuir algo de
distinto e até de oposto aos hábitos e vícios da época. Num tempo desvairado,
onde a mentira e a omissão se sobrepõem aos valores da integridade, da honra e
da decência, Ramalho Eanes é peça quase única. Eu, pelo menos, conheço poucos
ou nenhum que se lhe equipare. Ele é um homem com a respeitabilidade antiga,
daqueles para quem o aperto de mão constituía um compromisso irrefragável; um
desses raros cavalheiros da velha fidalguia de província que jamais quebra o
pacto de decoro e de brio estabelecido consigo mesmo. De contrário, seria
"uma vergonha."
A homenagem que lhe fizeram vem
na hora própria porque abre um parêntesis de memória virtuosa no lamaçal em que
se pretende afogar-nos. O Marcelo, como lhe é costume, tentou confundir a
reunião da Aula Magna com o tributo a Eanes, demarcando uma como de Esquerda e
outra de Direita. Astúcias frequentes no comentador, tal o velho palhaço
Chacrinha, na televisão brasileira, que dizia: "Estou aqui para complicar;
não para explicar." A verdade é que tanto Soares como Eanes, se não obtêm
unanimidades, conquistaram o afecto de muita gente de Direita e de Esquerda,
indiscriminadamente. Viu-se, aliás, nos dois acontecimentos aludidos. E se esse
afecto não é determinado pelos mesmos motivos e razões, outros há, de certeza,
que aclaram e justificam a sua peculiar natureza. Uma certeza: nenhum destes
dois está no outro lado da História.»
BB, DN, 27/11/2013