Enquanto o governo não decretar o
fim dos feriados municipais a bem da produtividade (!), o dia 22 de maio é o
dia da cidade de Leiria. É assim um diz 10 de Junho em miniatura: há sessão
solene na Câmara em que o presidente homenageia as figuras que o município
considera que se destacaram ao longo do ano ou das suas vidas. De resto mais
nada. Apetece-me dizer «o marasmo do costume» mas receio bem que os leirienses
que fazem o favor de passar por aqui fiquem ofendidos… De resto mais nada,
mesmo! Há a Feira de Maio que acontece ao longo deste mês, com os carroceis, os
carrinhos de choque, as atrações para a pequenada e para a juventude, há as
barraquinhas de artesanato e de bugigangas que já nada devem vender, ah! e as famosas
e tão apreciadas farturas da Família Penim que vêm há dezenas de anos da margem
sul para fazerem as delícias dos leirienses. Sei que a dita família, já cansada
e entrada na idade, não faz mais nenhuma feira senão a de Leiria por questões
sentimentais – é que o filho mais novo, já trintão, nasceu por cá há muitos
anos, por altura da Feira.
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Feira de Leiria |
A Feira – que agora se realiza em
maio, mas que inicialmente se realizava em março – dá alguma animação à cidade
porque faz parte da tradição e as pessoas gostam de dizer que “já foram à Feira”.
A malta nova adora ir à Feira e, porque tem lugar já na segunda metade do
terceiro período letivo, é um corrupio de alunos a, muitas vezes, faltarem às aulas
para irem em grupo para a Feira.
A mim a Feira nunca me atraiu.
Traz-me um misto de tristeza, de melancolia, um nó na garganta que me vem
talvez da descrição da triste Feira feita da forma mais realista e cortante por
Soeiro Pereira Gomes no seu livro «Esteiros»
(1941) que li e reli e estudei com os meus alunos nos idos anos 70.
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Esteiros do Tejo |
«A Feira era
no fim da vila, rente à estrada.
Três ruas
ladeadas por barracas de serapilheira e pano cru; num topo o circo, noutro a
praça de toiros. Ruas apinhadas de gente, barracas atochadas de bugigangas. E o
povo a passear desejos… E os feirantes a aguardar esperanças…
Sobre o arco
tosco da entrada, um alto-falante enrouquecido teimava em animar o largo com
música estafada, que ninguém ouvia. O sol, indiscreto, desnudava a fealdade das
barracas e a desarmonia gritante daquele amontoado de misérias. De dia, a Feira
era arraial sem festa. – Uma vergonha para a nossa terra – diziam nos cafés os
senhores civilizados. As meninas «bem» desdenhavam daquela misturada. E os
velhos recordavam: - Noutros tempos… - Mas, à noite iam todos para a Feira. A lua,
bondosa, emprestava reflexos de prata às serapilheiras e riscados. E, se acaso
se escondia entre nuvens, lá estavam as mil lâmpadas de cores para corrigir o desbotado
das pinturas. À noite, a Feira era outra.
Por isso,
Gineto passou a tarde ansioso pelo acender das luzes e, depois, achou mais
atraente a palidez doentia da rapariga da barraca de tiro, que se chamava
Rosete e tinha uns olhos esquisitos como o seu nome. Também ela notara que
estava ali um valentão, como o Tom Mix, que tresmalhava toiros e desafiava
guardas e caseiros de quintas, sem temor.
- Vai um tiro,
freguês?
Pegou na
espingarda, fez pontaria… e não acertou. (…)
Encostou-se ao
balcão sem desfitar Rosete, que foi atender outros fregueses. Um deles, depois
de escaqueirar púcaros de barros sem conta, segredou qualquer frase que
provocou o riso da rapariga e alvoroçou o coração de Gineto. «Aquilo era de
mais!» Rebuscou nos bolsos os restos da féria. «Se tivesse ao menos cinco
tostões…» Desiludido, resolveu acabar com aquele suplício. E, quando o rival
faz pontaria de costas para o alvo, Gineto passou-lhe uma rasteira e estatelou-se
sobre o balcão.
Receosa de
complicações, Rosete apaziguou a luta que se esboçava.
- Deixe lá o
miúdo. Foi sem querer.
- Parece que
está apaixonado por ti – escarneceu outra rapariga.
- Que ideia!
Eu não desmamo crianças.
Gineto abriu
caminho e fugiu, amarfanhado de raiva. Novamente moço de telhal, ao acaso pelas
ruas da Feira, recebendo encontrões e motejos.»
Ilustrações de «Esteiros» por Álvaro Cunhal