Como já deu para ver, gosto muito de poesia. Daquela que canta o Amor, a Paixão, a Natureza, os sentimentos em geral. Sempre gostei. Desde que comecei a ler poemas nas selectas de Português, tinha para aí 11, 12, 13 anos. Desde Bernardim Ribeiro a Sá de Miranda, ao Camões lírico, Correia Garção, Almeida Garrett, Florbela Espanca, etc. etc. até Álvaro de Campos e os outros Pessoas, Gedeão, David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, o Torga e outros e outros.
Sempre admirei quem consegue fazer malabarismos com as palavras de todos os dias e organizá-las aparentemente de forma tão simples nas imagens mais límpidas e mais puras que, subitamente, nos conquistam a alma. Como acontece a criação poética?
E então encontrei uma resposta tão bela e tão pura no livro que ando a ler (sem enigmas...) e que é os “Sinais de Fogo” do esquecidíssimo Jorge de Sena. Aliás, tenho de pedir desculpa à sua memória por só agora, ao fim de tantos anos e de tantas leituras, estar a ler este portento da nossa literatura contemporânea. Foi votado ao exílio no tempo da ditadura e acabou por quase ter sido votado ao esquecimento. Actualmente parece-me estar a haver um movimento de recuperação dos seus extraordinários escritos.
Então, passo a transcrever: “Acendi um cigarro. Onde iria jantar? Não me apetecia comer. Apetecia-me fugir. Para onde e porquê? E, de repente, ouvi dentro da minha cabeça uma frase: «Sinais de fogo as almas se despedem, tranquilas e caladas, destas cinzas frias.» Olhei em volta. De onde viera aquilo? Quem me dissera aquilo? Que sentido tinha aquela frase? Tentei repeti-la para mim mesmo: «Sinais de fogo...» Mas esquecera-me do resto. Com esforço, reconstituía a sequência: «Sinais de fogo os homens se despedem, exaustos e espantados, quando a noite da morte desce fria sobre o mar.» Não tinha sido aquilo. Não era aquilo. E que significava? Seriam versos? Repeti mentalmente: «Sinais de cinza os homens se despedem, lançando ao mar os barcos desta vida.» Novamente as palavras eram outras, ou quase as mesmas mas diversamente. Tirei um papel do bolso, e escrevi: «Sinais de fogo os homens se despedem, lançando ao mar os barcos desta vida.» reli o que escrevera. E depois? Olhei o mar que escurecia, com manchas claras que ondulavam largas. Os barcos que iam pelo mar fora, e nalguns havia lanternas acesas. «Nas vastas águas...» Nas vastas águas... Era absurdo. Eu fazendo versos? Porquê? Amarrotei o papel e deitei-o fora. Mal amarrotado, ele foi descendo num voo balanceante, até que pousou numa rocha. Aí, vacilou, aquietou-se, e, numa reviravolta súbita, deixou-se cair para o meio das pedras e sumiu. Era quase noite escura. Voltei para a cidade.
As ruas iluminadas fracamente, e vazias de gente, eram tristes. Encontrei uma tasca para jantar. Havia um balcão comprido, de onde o patrão me fez salamaleques, e do outro lado, separadas por baias de madeira pintadas de preto, estavam as mesas, só uma delas ocupada. O criado guiou-me para uma delas. (... ...)
Ele foi ao balcão, e trouxe os talheres e os pratos, e também uma garrafinha de vinho e um galheteiro. «Nas vastas águas que as remadas medem, tranquila a noite está adormecida.» Eram versos, sem dúvida. Mas havia alguma razão para que eu os estivesse fazendo, ou para que eles se fizessem dentro de mim, à minha custa? Eu nunca lera muitos versos, nunca me interessara especialmente por poesia. Na minha família, a literatura não tinha qualquer existência, nunca ninguém fora escritor. Liam-se livros, sem dúvida, mas por desfastio, e sem fixar sequer o nome dos autores. Na minha casa, ainda menos: nem os havia. Escrever... mas só por piada!”
(in “Sinais de Fogo” – Jorge de Sena Obras Completas, Guimarães, Babel, 2010. págªs 153 – 155)